30/04/20

Ordem em Transição


 

Em Setembro do ano passado penso ter sido assertivo quando escrevi que a aprovação do Regulamento de Organização e Funcionamento das Estruturas Regionais e Locais da Ordem dos Arquitectos (ROFERLOA) constituir-se-ia na maior transformação orgânica e funcional na Ordem dos Arquitectos desde que a mesma em 1998, deixou de ser Associação dos Arquitectos Portugueses! As transformações assumidas, numa oportunidade conjuntural e por maioria relativa em plenário de Delegados da Ordem dos Arquitectos, permitiram que entremos em período eleitoral, na perspectiva de sete novas secções regionais.

Percebendo a importância do que estava em causa, o Presidente da Assembleia de Delegados, e bem, abriu as assembleias à participação de todos os associados. Abertura que procurava colher junto dos associados, ora privados destes espaços deliberativos, uma leitura transversal e consultiva. Apesar de em Setembro passado eu apelar para que “apesar de o voto ser a nossa maior arma na definição dos caminhos futuros que pretendemos para esta Ordem, não podemos desprezar esta oportunidade”, a participação em assembleias e sessões de esclarecimentos foi residual a Norte e quase nula a Sul. Não havia razões para tremendo desinteresse. A Ordem estava em mudança e merecia uma participação objectiva, informada e mais que tudo, responsável.

As novas secções espalhadas pelo país terão agora de se constituir com corpo executivo, respectivos concelhos de disciplina e mesas de assembleia. A multiplicação de pessoas na estrutura executiva da Ordem não poderá ser desculpa para falta de representatividade no território, mas será factor decisivo na resposta qualitativa, principalmente nos primeiros momentos de mandato. Espera-se que esta transformação permita regulamentar transformações significativas nas estruturas de representação local que permitirão desenvolver o aceleramento da tão desejada equidade entre os associados residentes nos dois grandes centros urbanos e o resto do país.

Uma Ordem que aparentemente sairá musculada e capaz de dar resposta às necessidades dos seus associados, num extenso processo de desfragmentação e povoação de territórios carentes de apoio e proximidade, viverá no período pós-eleições a sua maior dificuldade na restruturação organizacional.

Perante um passo de gigante no escuro, será a ausência de certezas no que concerne à saúde financeira, após esta mutação orgânica, a corda que permitirá à Ordem maniatar-se a si mesma? Na certeza de quem poderá desvendar e resolver este problema serão os novos eleitos, não nos resta outra solução que não seja votarVotar de modo massivo mas sobretudo consciente de que o caminho, mais do que nunca, não será fácil para quem nos vier a liderar!


Jornal Construir nº411 
Abril 2020

23/04/20

Polifonia Regional


Em tempos de retiro obrigatório, a internet é quem mais ordena. Lá atrás, num passado ainda recente, eram as enciclopédias que organizavam e descreviam o conhecimento do mundo. Era nesses calhamaços que descobríamos os reinados, a matemática ou as mais variadas ciências. Uma educação circular que permitia para além do significado da palavra, compreender o conceito ou disciplina em si reportada. O tempo dos livros já lá vai e cá por casa, já reinam mais objectos electrónicos do que livros por ler! O paradigma mudou mas a procura pelo Homem de mundividência continuará para além de qualquer quarentena imposta pelo exterior.

No último fim-de-semana, entremeado por cabrito e batatinhas assadas, aproveitei para rever alguns dos filmes do Michel Giacometti sobre as suas recolhas etcno-musicais dos cânticos que acompanharam o trabalho rural da Beira-Baixa. Em um desses filmes, o narrador relatava que o canto da sacha fora “cantado polifonicamente a três vozes...” de imediato um dos meus filhos, que passava por perto, perguntou pelo significado da expressão “polifonicamente”... A resposta não necessariamente tremida mas embrulhada ao nível de conceito, e apesar de saber perfeitamente que a resposta deveria ser mais complexa, lá lhe expliquei que era qualquer coisa aproximada ao significado de uma melodia cantada a várias vozes. Após a frustração lá fui à internet resolver essa questão de conceito. Entre pesquisas, o que ressaltou não foi a definição mas a expressão assertiva de polifonia que “... em tempos de quarentena, um evento realizado no Fundão, juntou trinta músicos que actuaram desde suas casas em transmissão em directo e via streaming”. O Fundão FicaEmCasa Festival acabou por ser um extraordinário momento de registo dos “bons sons” e sobretudo do eclectismo musical que ainda é produzido por terras da Beira. Apesar de tudo, a nossa parcialidade ainda nos permite reconhecer a importância deste tipo de iniciativas agregadoras de uma comunidade cada vez mais distante dos meios culturais. Um momento inusitado deste ingrato confinamento permitiu o desenvolvimento e reinvenção de um espaço genuíno de partilha e gigantesca generosidade Beirã. Sem preconceitos ou descriminação, o mentor Fernando Tavares espraiou um tapete sobre campo aberto, para que estas estrelas, algumas para mim até então desconhecidas, pudessem brilhar ou sair do anonimato. Agora, só há um caminho para todos estes artistas, um palco comum, mais real, com luzes, fumos e muita música seja ela qual for.

Polifonia é definida pela Wikipédia enquanto “técnica compositiva em que duas ou mais vozes se desenvolvem preservando um carácter melódico e rítmico”.  Para lá do desenho deste conceito, do momento histórico do evento e da ideia de agregação de um punhado de artistas num bem comum, a principal ideia que retenho é que no Fundão, durante três dias estivemos perante uma polifonia regional, onde fica provado que é possível fazer um Festival em que os “copos” não foram a melodia!

02/04/20

... o trigo do joio.




Em Portugal, para a grande maioria das pessoas o arquitecto ainda é o alfaiate de fato à medida, que olha para o cliente como estrela cintilante dos palcos pop. Entendem-no como  artista de devaneios que cria casas onde não se pode morar. Casas  para os flashes das revistas. Não podiam estar mais errados! A profissão não é hermética e as áreas de intervenção abrangem um espectro muito largo para além das áreas directamente ligadas ao projecto, tornando-a assim complexa na sua interpretação. A ideia estereotipada do arquitecto-artista que opera apenas para uma classe endinheirada é pensamento pouco esclarecido sobre a importância do papel da arquitectura nos desígnios das nossas vidas. Profissão que necessita de relações humanas e sobretudo da boa vontade, dedicação e competência de centenas de intervenientes nas mais diferentes especialidades para que a obra chegue ao fim... Sim, sim... Que chegue ao fim!

Se na última década os gabinetes de arquitectura têm dados passos tímidos nos processos e metodologias de projecto para que o mesmo possa ser mais operativo entre especialidades e ausente de erros, será a pandemia do Covid-19 o acelerador dessa uniformização? Irá a obrigatoriedade de trabalho a partir de casa provocar a revisão e adaptação destes mesmos processos e metodologias , assim como na reorganização do trabalho em equipa? Irá o espaço de atelier, lugar de discussão e partilha, onde no confronto surgem as melhores ideias,  desvanecer para o espaço virtual? Estaremos perante o fim das tipologias tradicionais de escritórios? Será este factor importante na gestão dos custos de projecto tornando o projecto de arquitectura mais apetecível financeiramente para o cliente?

Esta experiência global, apesar de surpreendente, obrigou a toda uma estrutura societária a permanecer em casa, provocando a reflexão generalizada nos processos e rentabilidade dos sectores directamente associados aos serviços. Se no final do ano passado, a Microsoft garantia níveis de rentabilidade superiores quando os seus funcionários usufruíssem de fins-de-semana de descanso com três dias, porque não agarrarmos a oportunidade promovida por esta experiência forçada?

São muitas as perguntas sem respostas imediatas, acredito que algo acontecerá, mas nunca revolucionário! Será sim um momento de análise e reposicionamento sobre as metodologias através de ajustamentos que se reflectirão em apenas mais um passo nos caminhos que estávamos todos a trilhar. No entanto, estou certo que esta pandemia embaterá com tal violência e de modo tão veloz que será ela própria, o crivo que separará o trigo do joio neste sector tão frágil.

01/04/20

Between the River and the Sea

In this interview João Luís Carrilho da Graça reflects on how the river and the sea have shaped the city of Lisbon and his work.





Can you tell us about the special relationship that Lisbon has with the river and the sea.

With the river in particular … and with the estuary known as Mar da Palha (Sea of Straw). The city of Lisbon definitely wouldn’t exist if it weren’t for the mouth of the Tagus River, which is an extraordinary space from an ecological and natural perspective.

We often hear people talking about how the light in Lisbon is distinctive. But it isn’t unique, there are many coastal cities near large bodies of water that also have very distinctive lighting, such as Venice. The name Mar da Palha probably stems from the water taking on golden hues at sunrise and sunset and because it is a large mass of water with a significant effect on the city’s lighting.

What about the relationship of the people of Lisbon with the water?

The importance of water and the presence of the river and, further afar, of the sea, which also has a certain influence, is almost always a contrast in terms of the topography on which the city is built. And I find the water and the contours of the valley, and the highest points—the ridgelines—fascinating, because they structure the paths in any territory in the world. Since Lisbon’s topography is so angled and interesting, they continue to be a fundamental reference to this day, probably because they are based on the first paths imaginable in this territory.

This set of high lines—as opposed to the water lines, many of which were already carved out and absorbed by the shape of the city—is the matrix of the city of Lisbon. From a dynamic point of view, we have the river and the port, which is an exceptional creation, and we can then picture the history of the relationship between the city and the river.

Based on your view of the territory and how the water limits and shapes the topography, does your analysis and interpretation become elements that determine how you design near the coastline?

In a way, yes. But I don’t analyze the topography and the relationship with the water and then design something in a rational sense. The interpretation is important and, in one way or another, it informs my designs and the views I have on this relationship. Ever since I started working, I have always thought that this idea of a dynamic relationship between the topography and coastline is important. Reflecting on this boundary between the land and the river from an architectural perspective is a very interesting theme.

What are your thoughts behind the design of the Campo das Cebolas and the Cruise Terminal? Because they are two very defining constructions that are both on this boundary.

Indeed. This was to some extent a coincidence, because there were three public competitions. The first was by invitation only for the urban planning of Boavista, which I won, and my initial design was a step towards this relationship between the city and the river.

The next competition was in 2010, for the Cruise Terminal, which I was also fortunate to win. My idea was to construct it within the space—as though it were a field in an artistic sense—where the former Jardim do Tabaco dock was located, and to build everything from there. It’s as if the building is the result of a more or less telluric movement of the harbor platform and the port, and creates a kind of interaction or dialogue with the city, which is breathtaking.

And the third competition was for Campo das Cebolas. From the start, I thought it would be interesting to have a completely different square from Terreiro do Paço, which is opposite of it and has a palatial design. The site was, in fact, dedicated to street markets, and it had an everyday port where smaller boats from the river or that part of the estuary would all come to dock. The main idea was to create a square with a lot of activity that reflected all the existing intensity and create views of the river and the city.

Finally, could you speak about the emotional relationship that architects have with water. In your work is it more than a logical design issue?
I believe that in Lisbon, the relationship with water is more or less idyllic. It’s an interaction between the city and the water, and, when we walk around the city we are always surprised by the unexpected views overlooking the river, the estuary, the sea. And I believe that this interaction with the setting, with what is built, and with the water is a kind of bond that any person would feel when visiting Lisbon, not just architects.

It makes the city unique in its architecture, in how it is built on top of the territory and in its always surprising correlation with water. Take the Alfama, for example, whose name is related to the many hot springs and baths—the hammams— that existed at the time. Today that is all but forgotten but someday it might be revived; the city has always had a very intense and very interesting relationship with water in every aspect.

This interview has been edited and condensed for clarity.
http://www.rocagallery.com/between-the-river-and-the-sea

Entrevista ocorrida a 11/02/2020 conduzida por Pedro Novo e preparada em conjunto com Diane Gray.

... à deriva


No passado recente, dois prémios Pritzker e uma série de galardões internacionais alteraram de forma brilhante as coordenadas do panorama arquitectónico português, conseguindo potenciar um olhar mais atento por parte de académicos, investidores e críticos internacionais. Os resultados são os esperados, reduzidas portas abertas para o mercado internacional e uma natureza “pouco comercial” sem capacidade de ultrapassar as dificuldades. Perante o panorama de crise interna, a África lusófona permitiu uma sustentabilidade temporária maioritariamente aos pequenos ateliers portugueses, neste oceano de águas turvas.  Actualmente a economia ergue-se, a banca financia cada vez mais os privados e as dinâmicas em torno da construção emergem energicamente em torno da recuperação do imobiliário. Uma recuperação que vem tarde, onde um passado recente de crise empurrou milhares de jovens arquitectos para além-fronteiras e obrigou outros tantos a se reinventar, a alterar o modus operandi da profissão ou a escolher outros caminhos diferenciados da arquitectura. Alguns dirão que é a “ordem natural das coisa”, outros “um mal necessário” para fortalecer a profissão, na certeza porem, quem verdadeiramente perdeu foram os processos de consolidação da arquitectura no nosso território e um sem número de jovens promessas a Pritkzer que hoje contribuem para outras realidades! Perante tempos complexos e sem ancoragens, a incerteza pairará no rumo das academias, na nossa actual cultura arquitectónica e sobretudo no nosso criticismo bacoco!

artigo publicado na 
revista Concreta 2016