No panorama da arquitectura lisboeta do início
do século XX destacam-se os nomes de vários arquitectos que assumem um papel de
relevo a nível nacional, ditando os caminhos da evolução e renovação constante
de modelos ornamentais, de modos de edificação e de sistemas construtivos. Uma
destas figuras de relevo é Manuel Joaquim Norte Júnior, arquitecto que inicia a
sua actividade nos primeiros anos de Novecentos e que, sendo desde cedo
galardoado em diversas edições do Prémio Valmor, se torna um dos principais
arquitectos de Lisboa na segunda e na terceira décadas do século.
Norte Júnior,
como é designado abreviadamente desde então, nasce na véspera de Natal de 1878
em Lisboa, sendo filho de um artífice do mundo da construção, designadamente um
carpinteiro de origem algarvia, situação comum a muitos outros arquitectos do
seu tempo. Após completar o seu curso de arquitetura em Lisboa, prossegue os
seus estudos enquanto pensionista do Estado em Paris. Após o seu regresso a
Lisboa, a sua primeira obra de destaque é a Casa-atelier do reputado pintor
José Malhoa, situada numa esquina da Avenida 5 de Outubro, a qual projecta em
1904 e pela qual recebe o Prémio Valmor do ano seguinte. Entre as suas obras
mais conhecidas no domínio residencial urbano estão o Palacete de José Maria
Marques situado na Avenida Fontes Pereira de Melo, conhecido por albergar a
sede do Metropolitano de Lisboa, obra que projecta em 1911 e pela qual recebe o
Prémio Valmor de 1914, bem como os grandes e inovadores edifícios mandados
erguer pelo Visconde de Salreu na Avenida da Liberdade entre os números 206 e
208, igualmente com frente para a Rua Rodrigues Sampaio, projectados a partir
de 1912 e galardoados com o Prémio Valmor de 1915, além do edifício da esquina
da Rua Braamcamp com a Rua Castilho projectado em 1921. A estes podemos ainda
somar a sede de “A Voz do Operário”, projectada em 1912 para um local de
destaque junto da Igreja de S. Vicente de Fora, ou os Armazéns Abel Pereira da
Fonseca, projectados em 1917 para o Poço do Bispo. Para além dos limites da
capital destacam-se vários projectos que realiza para a Costa do Sol e,
sobretudo, o Palace Hotel das termas da Curia e o edifício da Sociedade
Amor-Pátria na cidade açoreana da Horta.
Sendo no princípio
do século XX, a zona da Baixa Pombalina e do Chiado, o território de maior
destaque urbano em Lisboa no domínio comercial, também ali Norte Júnior deixará
a sua marca em diversas obras de referência e de transformação urbana,
assumindo frequentemente posições de grande destaque e visibilidade nas
principais artérias e espaços, tais como a Rua Garrett, a Rua do Carmo, o
Rossio e a Rua Augusta.
A primeira
obra de grande destaque projectada por Norte Júnior neste território de matriz
pombalina corresponde ao Café Chave d'Ouro, encomendado por Joaquim Albuquerque
em 1915 para a frente poente do Rossio. A intervenção realizada por Norte
Júnior, durou apenas até meados da década de 1930, quando uma remodelação e
ampliação do Café Chave d’Ouro ditou o total desaparecimento dos elementos
datados de 1915-1916. O projecto era caracterizado sobretudo pela sua
representação exterior, de grande exuberância formal. A fachada sóbria
setecentista é rasgada no piso térreo e primeiro andar por um vistoso
frontispício ricamente ornado escultoricamente. Este frontispício assume uma
composição assimétrica, com um tramo de vão único do seu lado esquerdo,
relativo a uma tabacaria, e um tramo mais largo do seu lado direito,
correspondente à entrada no café. É este ultimo que assume maior destaque, com
uma composição tripartida no piso térreo, onde a porta em posição central surge
flanqueada por duas colunas estilizadas em mármore, e um janelão único no piso
superior, sendo todos os vãos caracterizados pelos seus remates superiores em
arco abatido. Sobre a porta central, interrompendo a cornija curva com volutas,
emerge uma figura humana alada segurando uma lanterna sobre uma faixa com a
designação do café. Lateralmente, rematando as ombreiras do vão tripartido,
surgem dois mascarões e, superiormente a estes, duas luminárias. Rematando
superiormente toda a composição é disposto um medalhão com a data de 1916.
Apesar da curta existência desta obra, alguns dos seus elementos serão
retomados em projectos seguintes de Norte Júnior para este território.
O Edifício do
Crédito Predial Português, erguido em plena Rua Augusta, constitui a maior obra
de Norte Júnior neste território. Por este motivo, este edifício destaca-se das
dominantes edificações de origem pombalina pela sua fachada marcadamente
ecléctica com elementos clássicos estilizados de um modo geométrico, indiciando
já em 1919 as vindouras influências Art Déco observáveis com maior clareza num
desenho proposto para os portões térreos, que não chega a ser executado.
Ressurgem aqui as colunas como elemento marcante da entrada principal, feita
agora por três altas portas localizadas num tramo central, mais largo,
flanqueado por outros dois tramos mais estreitos, separados daquele por duas
altas pilastras estilizadas. Os interiores, inteiramente alterados na década de
1970, eram um reflexo da tripartição do alçado principal, sendo que os postais
de entrada permitiam aceder a um amplo átrio de múltiplo pé-direito, num espaço
de planta quadrangular com os pilares de gosto geometrizante nos ângulos
contrastando com o pavimento em mármore com desenho clássico ainda hoje
existente.
A mais
conhecida obra realizada por Norte Júnior na zona do Chiado corresponde à
remodelação e ampliação do espaço ocupado pela firma Teles e C.ª, o celebrado
Café "A Brasileira", realizada em 1922. Fora em 1905 que se instalara
aqui o estabelecimento de venda de cafés da firma Teles e C.ª, num espaço
anteriormente ocupado por uma camisaria. Com o sucesso do negócio e a
necessidade de introdução de novas valências, o espaço passa a funcionar
igualmente como café em 1908. Catorze anos volvidos, Norte Júnior é chamado
para projectar as obras de ampliação do espaço incluindo a sua ostentosa
ornamentação interior. O edifício residencial de matriz pombalina apresentava
já nos primeiros anos de Novecentos o seu piso térreo transformado pela
introdução de devantures em ferro
fundido, uma das quais correspondente ao espaço comercial da firma Teles e C.ª.
Esta devanture, de três vãos, é agora
substituída por um frontispício de elaborado desenho ecléctico na qual se
repete a estrutura inicial tripartida em ferro fundido, agora com uma nova
ornamentação e enquadrada por um arco de volta inteira e por duas esculturas
situadas nos extremos laterais, projectando-se sobre o passeio apelando à
entrada no interior do café, numa conjugação da arquitectura e da escultura
ornamental que suplanta o modelo já expresso anos antes no Café Chave d’Ouro. O
espaço interno, uma sala estreita e comprida, é marcado pelo seu pavimento em
mármore preto e branco, pelas duplas pilastras de mármore preto e capitéis
dourados ritmando as paredes laterais, pelos seus lambrins de madeira, pelos
seus espelhos e pelos seus estuques, acrescentando-se a estes a elaborada
parede de fundo com frontões enquadrando um relógio central. O balcão do café ocupa
o lado à direita, transpondo para a planta do espaço comercial a tripartição da
fachada. O café será o epicentro de um importante círculo artístico e cultural
da capital, sendo por este motivo que logo entre 1922 e 1923 vários dos
artistas que o frequentam realizam um conjunto de pinturas em tela, dentro das
correntes artísticas mais vanguardistas, sendo aquelas expostas nas paredes do
café. Entre os seus autores estão Jorge Barradas, Eduardo Viana, Almada
Negreiros e Stuart Carvalhais. As pinturas originais são vendidas em 1969, mas
em 1971 outras telas de artistas contemporâneos, como Carlos Calvet, Eduardo
Nery e Nikias Skapinakis, vêm ocupar o espaço das anteriores. O agora celebrado
Café "A Brasileira" acaba por se tornar num dos cafés mais concorridos
de Lisboa também pela sua relevância enquanto espaço de comunhão e participação
da comunidade intelectual e artística da cidade. Escritores e artistas de
renome como Almada Negreiros ou Fernando Pessoa encontraram ali um lugar de
debate e inspiração para gerações futuras. De relevar que os actuais
proprietários ainda hoje promovem esta singularidade permitindo o contacto do
visitante com objectos pessoais de Fernando Pessoa dignamente ali expostos.
A assiduidade
de Fernando Pessoa motivou a inauguração, nos anos 1980, da estátua em bronze
da autoria de Lagoa Henriques, que representa o escritor sentado à mesa na
esplanada do café. Com toda a importância que teve na vida cultural do país,
mantém hoje intacta a sua identidade, quer pela especificidade da sua
decoração, quer pela simbologia que representa por se encontrar ligada a
círculos de intelectuais.
Em 1925 Norte
Júnior volta a conceber um projecto de relevo para a zona do Chiado, desta vez
para a Rua do Carmo, designadamente o estabelecimento comercial da Joalharia do
Carmo, detido então por Raul Pereira e adquirido posteriormente pelo ourives
portuense Alfredo Pinto da Cunha. Este espaço ocupa os espaços inferiores da
chamada "muralha do Carmo", um alto muro de suporte das estruturas do
antigo convento arruinado pelo terramoto de 1755. A muralha fora nobilitada e
reconstruída em 1911-1912 segundo um projecto da autoria do arquitecto Leonel
Gaia que passou pela introdução de arcos e de pilastras amplamente espaçadas.
Os espaços térreos de uso comercial são ocupados em 1925 pela Luvaria Ulisses,
a sul, seguindo-se a Joalharia do Carmo. É esta última que é projectada por
Norte Júnior, ocupando o espaço correspondente a um arco abatido cujo vão é
tratado de forma semelhante ao do frontispício de "A Brasileira", com
uma ornamentação ecléctica em ferro fundido. O pequeno espaço interior é
caracterizado por um primeiro compartimento de planta rectangular ao qual se
sucede um outro, disposto por expansão do canto esquerdo do primeiro, de planta
arredondada, onde se inclui uma escadaria de acesso à sobre-loja. Por oposição
aos elementos de ferro da fachada, no interior a ornamentação assume uma clara
influência Art Déco presente em lambrins, vitrinas e no próprio guarda-corpos
da escadaria. Apesar dos seus cerca de 100 anos de existência, o espaço
comercial mantém a sua actividade de joalharia, mas agora em exclusivo sobre o
trabalho minucioso do ouro na arte da filigrana, em sintonia com os preceitos
de rigor introduzidos no desenho da concepção da fachada.
No ano
seguinte Norte Júnior realiza uma nova intervenção de relevo no contexto dos
edifícios de matriz pombalina, desta vez retornando à Rua Garrett. No edifício
da esquina defronte de "A Brasileira" estava instalado desde 188 um
estabelecimento comercial fundado pelos irmãos António e Ramiro Leão. Em 1926
um incêndio destrói parcialmente o edifício e este estabelecimento comercial,
conduzindo à necessidade de ali realizar uma profunda renovação. Neste
contexto, a intervenção de Norte Júnior passa simultaneamente pelo interior da
loja bem como pela modernização das fachadas. No primeiro caso, destaca-se a
introdução de vários elementos de destaque. Um deles é uma das duas escadarias,
a qual apresenta pinturas murais concebidas pelo pintor João Vaz (1859-1931)
representando o Palácio de Queluz, a Boca do Inferno, a Torre de Belém, o
Mosteiro dos Jerónimos e a Basílica da Estrela, juntando-se a estas um vitral
com motivos vegetalistas e animais. Outros são o emblemático ascensor que, tal
como os restantes espaços do interior do estabelecimento, é ornado numa
estilização Luís XVI, enquanto que nos tectos surgem três pinturas a óleo
elaboradas por alunos da escola Afonso Domingues com base em desenhos de João
Vaz. No exterior a intervenção de Norte Júnior destaca-se sobretudo pela
introdução de um torreão em balanço sobre as fachadas no próprio cunhal,
atribuindo-lhe um maior destaque urbano ao torná-lo uma charneira entre a Praça
Luís de Camões e o eixo comercial do Chiado.
Em 1929 Norte
Júnior realiza uma nova intervenção para o quarteirão do Café Chave d’Ouro,
elaborando o projecto para a renovação das instalações do centenário Café
Nicola, o qual fora adquirido igualmente por Joaquim Albuquerque. Esta nova
intervenção vem em linha com os pressupostos já observados nas fachadas dos
cafés Chave d’Ouro e de "A Brasileira", bem como da Joalharia do
Carmo, com a tripartição da fachada, o recurso a elementos escultóricos de
relevo e a aplicação de luminárias lateralmente, assinalando exteriormente o
café. Os elementos verticais que estabelecem a tripartição do grande vão são
novamente constituídos por duas colunas em mármore, à imagem do café projectado
por Norte Júnior para o mesmo quarteirão em 1915. Estas colunas, que aqui
assumem uma clássica ornamentação de ordem jónica, suportam agora uma verga
curva rematada lateralmente por exuberantes volutas, as quais enquadram a
designação do café. O projecto de Norte Júnior terá igualmente abrangido o
mobiliário e utensílios utilizados no interior. No entanto, desta intervenção
resta hoje apenas o frontispício de desenho ecléctico, uma vez que o espaço
interior foi somente seis anos depois alterado profundamente seguindo um
projecto do arquitecto Raul Tojal, o qual ali empregou uma ornamentação de um
gosto Art Déco tardio que certamente difere da inicialmente proposta por Norte
Júnior.
Nas décadas
seguintes Norte Júnior realizará novos projectos para o território lisboeta da
Baixa e do Chiado, como é o caso da remodelação do já desaparecido
estabelecimento comercial Américo Lima na Rua Augusta e de um edifício na mesma
artéria, entre outros. No entanto, as obras realizadas na década de 1920 ainda
existentes são aquelas que assumiram maior destaque urbano e aquelas que
revelaram um maior contributo para a modernização arquitectónica do núcleo
comercial da capital, mantendo-se como símbolos vivos da dinâmica cultural e
artística ali dominante durante várias décadas do século XX, nomeadamente o
Café "A Brasileira" e a Joalharia do Carmo, duas obras ainda hoje
preservadas na sua integralidade.
https://www.anteprojectos.com.pt/2022/05/27/case-study-norte-junior-do-rossio-ao-chiado/
Texto em co-autoria com José Pedro Tenreiro
Jornal Anteprojectors nº332
Maio 2022