“Queimar livros e erigir fortificações é tarefa comum
dos príncipes; a única singularidade de Che Huang foi a escala em que actuou. É
o que dão a entender alguns sinólogos, mas eu sinto que os factos referidos são
algo mais que um exagero ou uma hipérbole de disposições triviais. Cercar uma
horta ou um jardim é comum; não, cercar um império.” [i]
Jorge Luís Borges
Muros
O que “está na frente” é etimologicamente definido
pelo conceito da palavra fronteira. Numa
perspectiva estritamente histórica, a sua origem nunca esteve relacionada com
conceitos legais de determinação territorial nem mesmo na definição de
abrangências políticas de organização zonal. Espontaneamente, a evolução da
vida social produziu no decorrer da sua história conceitos de determinação de
margens no nosso cosmos de relações. Determinaram-se padrões de comunicação que
exigiram a definição de metas políticas entre civilizações. Por um lado, ao
longo da história, o conceito de fronteira assumiu uma perspectiva expansiva na
determinação referencial de lugar, sendo que o sentido de fronteira não era o
de fim mas o de começo de estado. Por outro lado, para o conceito de Estado
onde a soberania corresponde a um processo absoluto de territorialização, a
palavra gerada para definir uma unidade territorial, ou melhor a sua ligação
interna, foi a de limite. A soberania
do estado determina limites sociais que comumente se traduzem em periferias
territoriais.
No passar do tempo, muralhas e fortificações de
defesa produziram nos territórios separações determinantes na definição
cultural e no seu próprio desenho. Actualmente, no traçado planetário, em todos
os continentes sem excepção, existem cada vez mais muros, embora as designações
politicamente correctas sejam de “barreira de separação” ou “vedação de
segurança”. Segundo Donald Steindberg,
“as nações tomaram consciência dos efeitos desestabilizadores de fluxos de
refugiados, tráfico de drogas, armas e pessoas que os conflitos podem transmitir
através de fronteiras e através de regiões.”[ii] Existem cerca de 30
divisões físicas (na sua maioria fronteiriças) em todos os continentes que
segregam raças, nacionalidades, crenças, ideias e disputas territoriais: dos EUA
com o México, Irlanda do Norte, Espanha com Marrocos, Arábia Saudita com Iémen
e Iraque, Israel e Gaza, Uzbequistão e Turquemenistão, India e Paquistão, Tailândia
e Malásia, Brunei, Coreias, China, Rússia, entre outros. A disputa de
territórios não tem fim e apresenta-se determinante para alguns no orgulho ou
determinação religiosa. A esperança na realização de uma promessa de futuro, muitas
vezes está do outro lado da linha, virtualidade consciente e diferenciadora, no
entanto cada vez mais incapaz de controlar fluxos ou tentações. A construção
física de vedações implantadas em territórios perenes na sua génese e
topografia é cada vez mais uma constante. O controlo do espaço jurídico e
político obrigou ao longo do tempo a construção de
barreiras que permitiram a desenvoltura de estruturas e sociedades que
determinaram diferentes ocupações de território, apesar de se confinarem por
muros, sendo exemplo o muro de separação da Alemanha até 1989. A uma
escala geográfica de macro dimensão é possível perceber o quanto estes limites
são condicionadores das realidades urbanas de cada região ou país. Perante uma
realidade de unificação e cooperação entre estados de que a Europa é exemplo, na
constituição de uma definição de território sem controlos fronteiriços,
assistimos por outro lado, a uma época de criação de gigantescas estruturas físicas
de definição territorial no resto do planeta.
Érouv
Segundo a lei Judia, durante o Shabat (sábado), observado a partir de alguns minutos antes do pôr-do-sol
na sexta-feira à noite até o aparecimento de três estrelas
no céu na noite de sábado, é obrigatório o repouso a consagrar o eterno. O Shabat é um dia festivo em que os judeus
são libertados dos trabalhos regulares da vida quotidiana, oferecendo uma
oportunidade de contemplar os aspectos espirituais da vida e a despender tempo
com a família. A observância do Shabat
implica abster-se de uma série de actividades proibidas, como trabalhar
ou transportar qualquer tipo de objecto de casa para o exterior. No entanto se
nos remetemos ao Torah, um povo ou
uma cidade rodeados de um muro com portas são considerados como domínios
privados, e consequentemente qualquer pessoa pode transportar objectos da sua casa
para a rua e da rua para o interior da habitação. Existe assim uma clara
transferência de função espacial entre a casa e a rua. No entanto, são poucas
as cidades judias que ostentam muralhas, sendo para a generalidade dos judeus
nula qualquer tipo de actividade durante esse período. Contudo existe uma
excepção à lei, os Érouv. Os Érouv são estruturas de cordas que
definem um muro imaginário em que na maioria dos casos são postes improvisados
e interligados entre si num perímetro em torno da região. Quando definido o
perímetro, o Érouv converte o espaço
público em espaço privado, permitindo a partir de então o transporte de objectos
durante o Shabat. Segundo a Torah, a região, durante o Shabat e dentro do perímetro previamente
definido adquire um carácter privado. A casa a partir de então transborda os seus limites
para a rua confrontando o habitante para uma realidade expansionista dos usos
domésticos e quotidianos à escala do urbano.
Alphaville
O Brasil actualmente enfrenta níveis de
criminalidade elevados e neste momento torna-se fundamental o controlo
expansionista de bairros ou favelas de população de níveis sociais mais desfavorecidos.
O governo estadual do Rio de Janeiro para além do esforço na formação e criação
de mais forças policiais está a edificar muros de betão nas periferias das
favelas. Estratégia que visa impedir a expansão dos bairros clandestinos para
territórios próximos de condomínios de luxo privados. A medida é criticada por se
entender que segrega os pobres e consequentemente os esconde do turismo, no
entanto, apesar das críticas, continuam a ser edificados. Desde algumas décadas
que estratégias similares ocorrem em território brasileiro, no entanto numa
lógica inversa de controlo. Nos arredores de São Paulo na década de 70 criou-se
o conceito de Alphavilles. Face ao
aumento da criminalidade, insegurança no interior das cidades densamente
ocupadas, poluição e congestionamento rodoviário, geraram-se condomínios
privados de luxo de forma a oferecer aos mais abonados qualidade de vida em
segurança e conforto. Este tipo de condomínios são hiper-protegidos por uma
organização policial interna com corpos de patrulha e edifícios de segurança
internos. As Alphavilles
estruturam-se em condomínios (residenciais) circundados por áreas abertas de livre
acesso onde se localizam sedes de multinacionais, escolas, serviços e comércio.
Em dicotomia com o sossego, pacatez e quietude do interior dos condomínios, as
zonas de livre-trânsito apresentam hora de ponta, assaltos e violência urbana.
Para muitos urbanistas, Alphaville
define-se como um gueto entre muros e
segurança privada, que isola e promove uma espécie de apartheid social ao estimular a convivência apenas entre pessoas da
mesma classe social. A segurança privada aliada ao arame farpado edifica uma
redoma sobre um estado social em que o urbano é constituído de uma cenográfica
realidade. A segurança que encontramos no refúgio do lar é transportada para o
ambiente de rua, no entanto divergente do urbano circundante. O bairro numa
escala de aproximação muta-se na casa e o cenário do aquário eleva-se à
perfeição.
Open Space
“Humpty
Dumpty estava sentado, com as pernas cruzadas a la turca, em cima de um alto muro
tão estreito que Alice se perguntava como ele podia manter o equilíbrio…”[iii]
A vertigem sobre o muro é perene e no contexto do
urbano é no privado que provavelmente se encontra o equilíbrio. A fronteira
permeável ao contexto transporta invariavelmente cada vez mais a produção de
dinâmicas internas para processo habitacionais exteriores, e vice-versa. A
questão urbana na Polis por nós identificada desconstrói-se dos princípios de
centralização no lar. Este sentido edifica-se na tipologia cada vez mais ampla
em menores perímetros e diluída de funções. As novas interacções relacionais
assentes na “tecnopolis”, produzem experiência da velocidade e a transformação
do conceito-espaço-tempo na vida quotidiana. Segundo Cornelius van de Vem[iv] o espaço
dá prioridade à unidade espácio-plástica de interior e exterior e à assimilação
não hierárquica de todas as formas instrumentais, independentemente da sua
escala ou retórica, numa experiência contínua da relação espaço-tempo. Segundo Kenneth Frampton[v]
é neste sentido que se constrói a “metáfora corpórea” onde “o corpo reconstrói
o mundo através da sua apropriação táctil da realidade”.
Na definição das diferentes escalas existe uma
constante necessidade de divisão, fraccionamento e regramento do território.
Supõem-se que no privado a questão é mais serena. A definição de limites
territoriais é cada vez mais constante quando os mesmos adquirem definição politica,
religiosa ou social no caso da segurança. As fracturas exigem-se e pretendem-se
eternas. Constata-se que o habitante urbano apolítico encontra no contexto de
cidade resposta a necessidades, antes exclusivamente do lar. A cidade
complexificou-se e adquiriu a dimensão do particular. O homem urbano adquiriu
consciência das suas diferenças e da sua unicidade. Uma realidade do construído
que se expande e contrai vive da dimensão do limite como resposta às nossas
necessidades. Segundo esta nova realidade pretende-se criar o contraponto entre
os desejos de expansão e as necessidades de contracção do homem contemporâneo.
O privado, numa crescente minimização da sua dimensão, encontra na tecnologia e
na cidade a fuga para os seus limites. Em resposta a esta condição, o seu
perímetro privado redefine-se sem fronteiras entre funções. Os espaços
exclusivos de repouso são agora também eles de refeições, lazer ou higiene. O Open Space hierarquizou as funções. Os limites
encontram-se na definição do conforto térmico ou no controlo lumínico para com
o exterior. O privado é perene mas perante o urbano complexificou-se. O Open Space é agora o nosso próximo
limite.
[i]
Borges, Jorge Luís. Obras Completas, volume 2 – Lisboa, Editorial Teorema, 1998.(2) Jornal Expresso, Revista Única nº 1931, 31 de
Outubro 2009
[ii]
Jornal Expresso, Revista Única nº 1931, 31 de
Outubro 2009
[iii]Carrol, Lewis.Alice do Outro Lado do Espelho, Lisboa: Edições Relógio DÁgua,
2000
[iv]Frampton, Kenneth.
Studies in Tectonic Culture: The Poetics of Construction in the Nineteenth and
Twentieth Century, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, 1995.
[v] Frampton, Kenneth. Studies in Tectonic Culture: The
Poetics of Construction in the Nineteenth and Twentieth Century, The MIT Press,
Cambridge, Massachusetts, 1995.
Bibliografia:
- Bachelard, Gaston.
A poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 1998 .
- Barata, Paulo
Martins. Introdução ao estudo da Cultura Tectónica, Kenneth Frampton 1995.
- Goethe, Johann Wofgang von. Werther. Trad. João Teodoro Monteiro. Lisboa: Guimarães Editores; 1993.
- Imagem de Rodney Smith, www.rodneysmith.com
- Machado, Lia. Limites, Fronteiras e
Redes. T.M.Strohaecker e outros. Fronteiras e Espaço Global. Porto Alegre, p.
41-49, 1998
- Martins Barata,
Paulo. Álvaro Siza 1954-1976. Lisboa: Blau, 1997.
- Schuiten
e Peeters. La Frontiere Invisible, Tome 1.Brusels,Casterman, 2002 .
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