29/06/23

Fernando Távora "Longos dias têm cem anos"





26/06/2023

 Há precisamente 30 anos (1993), ainda eu não imaginava que me iria deslumbrar pelo mundo da arquitectura, inaugurava em Lisboa, mais precisamente no Centro Cultural de Belém uma exposição monográfica em torno da vida e obra de Fernando Távora. Teria desejado participar nesse singular momento, com a propriedade e interesse de hoje, na consciência do significado e da importância que a obra de Fernando Távora tem no panorama da arquitectura e cultura portuguesa no séc.XX.

 

A exposição intitulada “Percurso” presenteava-nos a abertura com um terno e expressivo manifesto, um Távora de braços estendidos onde afirmava: “Quereríamos que esta exposição fosse entendida como um apelo à Vida, como uma manifestação de esperança no destino do homem e como uma apaixonada afirmação do significado profundo da Arquitectura.” Fernando Távora e a sua equipa, resumiam os seus 70 anos de vida numa exposição construída em torno dos seus objectos pessoais, das suas memórias, dos seus livros, dos seus desenhos e de 22 projectos de arquitectura. Os possíveis de expor, entre muitos. Um marco que merecia ser repetido possibilitando aos mais jovens, hoje, saborear o traço do mestre com um outro olhar para além do écran do ipad.

 

Recentemente, a propósito do lançamento do Mapa da Arquitectura de Fernando Távora, a Fundação Marques da Silva, generosamente, disponibilizou um vídeo sobre a inauguração da referida exposição. Curiosamente Fernando Távora confessava o desejo de que dali a 70 anos (em 2063) se realizasse uma nova exposição sobre os 70 anos seguintes àquele data. Alicerçando a ideia de que por essa altura, ainda estaria vivo e o dia da inauguração, dessa segunda exposição, seria o revisitar das “recordações, realidades e sonhos, o passado e o futuro, factos, lugares, imagens, ideias e formas, gentes, viagens e leituras, assim se construindo a vida e obra de um homem e de um arquitecto”. Exposição que a acontecer em 2063, será com certeza um momento importante de reflexão histórica e de efectivo entendimento de uma geração charneira que fundou a “Escola do Porto” e percorreu os caminhos do movimento moderno em Portugal. Estando 2063 ainda longe, no actual ano de centenário do nascimento de Fernando Távora (1923-2005), será incontornável celebrar a obra de um dos maiores vultos da Arquitectura contemporânea Portuguesa. Que entre poucos, soube interpretar a arquitectura moderna internacional e “ajusta-la” ao contexto da arquitectura tradicional portuguesa. Apesar da importância desta irrepetível ocasião, e já decorrido metade do ano, são poucas as iniciativas de homenagem a Távora. Para além da visita guiada do arquitecto João Paulo Rapagão e do historiador Joel Cleto ocorrida logo no início do ano ou o Curso Breve “Arquitecto Fernando Távora: consagrar a vida à verdade” pelo arquitecto Luís Aguiar Branco a decorrer no mês de Maio no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett no Porto, não se vislumbram mais iniciativas nos próximos meses. Confesso que esperava um 2023 intenso na revisitação da obra e vida de Fernando Távora, não só pelas razões já referidas, mas sobretudo por entender que as gerações mais novas desejam descobrir a obra de alguém que viveu a disciplina tão intensamente e foi incontornável na definição dos caminhos do movimento moderno por terras lusitanas. A escassez de iniciativas até à data é notória, contudo espero ser surpreendido por uma grande exposição recapitulativa de centenário à imagem da exposição de 1993.

 

Sabendo do pouco tempo que nos resta, aguardo com expectativa as iniciativas que as entidades responsáveis pela promoção e valorização da arquitectura poderão estar a preparar no sentido de dignificar a obra do consagrado arquitecto em ano de centenário do seu nascimento. Espero não estarmos perante o desperdiçar de uma oportunidade única de justamente fazer história, tal como Agustina Bessa-Luís definia no seu “longos dias têm cem anos”, “E os longos dias passavam, carregados de justo sentimento pelas coisas que devíamos fazer de maneira lesta e durável. Às vezes, não se faziam nunca.”

05/05/23

Arquitectura a 6%


https://www.flipsnack.com/rcamacho/construir-481/full-view.html

21/04/2023 

O Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU) define a “Reabilitação Urbana” enquanto obras de “construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios”, constituindo-se assim num conceito abrangente e não circunscrito apenas à “reabilitação de edifícios”. A alteração de paradigma, agora proposta no programa Mais Habitação, no que diz respeito à constituição de “empreitadas de reabilitação” urbana alterando para empreitadas de “reabilitação de edifícios”, vem restringir a aplicação da taxa reduzida (6%) a apenas uma diminuta área da reabilitação urbana, ultrajando o espírito do RJRU e da Lei de Bases da Habitação! Tornando-se assim numa medida violentíssima e profundamente redutora na constituição de novas operações de reabilitação urbana em áreas não condicionadas por Plano Director Municipal, as chamadas áreas de Reabilitação Urbana (ARU).

 

Se entendo que esta estratégia será uma oportunidade perdida no que diz respeito à promoção do investimento em trechos de cidade não consolidados e áreas rurais, defendo que a verdadeira alteração na aplicação do regime do IVA deveria também ocorrer na fase de projeto, ajustada aos princípios constitucionais. Defendo também a implementação da taxa de regime reduzido transversal a toda a construção (reabilitação) nas suas diferentes fases. A engrenagem de todo este processo ocorreria na execução da prestação de serviços de arquitetura e correspondentes especialidades, apenas e só, para operações relativas a habitação própria, tal como já ocorre em congéneres europeus. Para o cidadão que procura construir a sua residência, a carga fiscal associada (23%), não sendo passível de dedução, jamais será ignorada no momento da tomada de decisão do investimento. Esta alteração, se por um lado facilitará o acesso à habitação através da cobrança de imposto reduzido no projeto e na construção, a introdução de 6% de IVA no custo dos projetos, irá de imediato tornar mais competitiva a prestação destes serviços. Esta medida, não introduziria qualquer alteração orgânica, na tão necessária estruturação/regulamentação dos honorários na arquitetura, contudo possibilitará no imediato e sobre um significativo campo da prestação dos serviços de arquitetura, o aceleramento na sua contratação, defendendo consequentemente esta classe profissional.

 

Com a concretização desta medida, o Estado, preconizava os preceitos há tanto esquecidos no 65º artigo da nossa Constituição, onde “todos têm direito, (...) a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” Incumbindo-se de “estimular (…) o acesso à habitação própria ou arrendada” e consequentemente adoptando “(...) uma política tendente a estabelecer um sistema (…) de acesso à habitação própria.” Na concretização destes preceitos, o Estado mais uma vez ajustaria ao concreto a Lei de Bases da Habitação de 2019 onde integra a “reabilitação urbana” na Politica Nacional de Habitação.

 

As medidas recentemente apresentadas pelo Estado através do Programa Mais Habitação, promovem um retrocesso silencioso, mas significativo, com a introdução de um “crivo” sobre o benefício da aplicação do código do IVA nas obras de requalificação e reabilitação. Pelo contrário, o Estado deveria ser mais ambicioso e consequente, introduzindo 6% de IVA em toda a reabilitação e nos custos dos projetos de arquitetura quando destinados para habitação própria.

09/03/23

Sustentável Arquitecto



Expresso

Hoje, a profissão de arquiteto tem uma exigência elevada e é por isso que a sua formação tem um percurso mais longo do que o normal – uma licenciatura acrescida da obtenção do grau de mestre. Todavia, e ao contrário de outras, a estruturação da carreira de arquiteto não reflete essa exigência e especificidade, nem no setor público nem no setor privado. Assim, são os serviços de arquitetura os que mais sofrem com esta omissão, tornando a concorrência desleal, inibindo os ateliês/escritórios de recursos para entrar no mercado internacional e deixando os próprios arquitetos reféns de um sistema de honorários/remuneração onde a arquitetura é a atividade mais mal remunerada de todo o ecossistema da construção.

Por outro lado, o processo administrativo transformou-se num labirinto onde se entra e do qual não se consegue sair, tornando evidente a urgência de se exigir uma burocracia moderna, que utilize apenas os meios indispensáveis para o funcionamento do Estado. Para que isso aconteça, os arquitetos não podem cair no engodo de se culparem a si próprios, desde logo não aceitando responsabilidades insustentáveis nem, tampouco, permitirem que se coloque o arquiteto projetista contra o arquiteto das entidades licenciadoras e vice-versa – isso não faz sentido porquanto o problema reside numa legislação fragmentada e numa organização disfuncional, que a desmaterialização ainda ajudou a complicar.

Nesta conjuntura, os arquitetos encontram-se perante um dilema, ou aceitam o atual panorama, ou assumem que é tempo de definirem um novo futuro.

O arquiteto contemporâneo, sustentável em todas as suas dimensões, é, tão simplesmente, um arquétipo de 28 mil colegas. Do responsável do ateliê ao que trabalha para outros; de quem está na função pública ou no setor privado; é projetista, professor, formador, curador, investigador, promotor ou fiscal; sonha sempre em cada projeto, mas também sofre dia após dia com a dificuldade da profissão.

A Ordem dos Arquitectos (OA) escolheu os Açores para, neste início de março, acolher o 16.ª Congresso dos Arquitetos, que decorrerá sob o tema da sustentabilidade. Para suscitar o debate, cerca de 300 arquitetos, envolvidos na atividade associativa, subscreveram um texto denominado de “Sustentável Arquiteto”, uma reflexão centrada na arquiteta e no arquiteto, que se entende ser mais pertinente e urgente do que a pretendida pelo alinhamento oficial do congresso, focada quase apenas na dimensão programática da arquitetura. Trata-se de um documento congregador e focado no futuro, ponderando sobre o momento atual dos arquitetos, as suas principais dificuldades e problemas.

E o que pretende o arquiteto atual? Em primeiro lugar, que o conceito de sustentável no arquiteto seja requisito ex-ante da arquitetura sustentável. Que se desconstrua o labirinto burocrático em que o País se envolveu, desejando que a Ordem dos Arquitectos exija medidas concretas ao Estado, mas num contexto de responsabilidade, equilíbrio e bom senso. Que a Arquitetura e os seus serviços sejam reconhecidos como de interesse público, permitindo que os arquitetos reclamem a sua função social. Que a voz dos arquitetos se faça ouvir nas questões de impacto nacional, regional ou local, impelindo a Ordem dos Arquitectos a um papel muito mais interveniente, transformando esta estratégia num correspondente plano de ação para o próximo triénio.

https://expresso.pt/opiniao/2023-03-01-Sustentavel-Arquiteto-4e317b24?fbclid=IwAR0F3A9CCOoEzE9Qo_US8ZIuwhGG39gRKm2nvNmomahoRQUwIpHqHhEYYkM

Texto escrito por : Arquitetos Avelino Oliveira, Susana Gouveia Jesus, Cláudia Gaspar, Luís Fernando Matos, Paula Torgal, César Lima Costa, Florindo Belo Marques e Pedro Novo

27/02/23

Noémia Coutinho, ser arquitecta nos anos 60



Anteprojectos 

Embora a profissão de arquitecto ainda enfrente desafios significativos em relação à diversidade de género, há esperança de que a sua equidade se torne uma realidade cada vez mais presente nesta área, permitindo que mulheres arquitectas sejam verdadeiramente reconhecidas pelo seu trabalho e dedicação a tão nobre arte. Comparativamente, a menor remuneração das mulheres, a falta de promoção e a exclusão de oportunidades de liderança são efectivamente factores de reflexão e consequentemente desafios que aumentam de complexidade quando confrontados com a conciliação da vida profissional e familiar.

 Há mais de 50 anos, as noções sociais eram uma barreira acrescida, e o trabalho de uma arquitecta por conta de outrem num gabinete de arquitectura nem sempre era visto com naturalidade. 

Exemplo paradigmático do confronto com esta realidade é o percurso de Maria Noémia Mourão do Amaral Coutinho nascida em 1937. Noémia Coutinho ingressa no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) em 1955, numa ocasião em que a frequência daquele era ainda essencialmente masculina. 

Com efeito, poucas foram as alunas do curso de arquitectura anteriores a Noémia Coutinho. As jovens alunas da ESBAP assumiam frequentemente a preferência pelo curso de pintura, frequentado há várias décadas por destacadas artistas portuenses, como Sofia e Aurélia de Sousa, entre outras. Esta escolha dever-se-ia em parte à conotação social dos diferentes ofícios, encontrando o da pintura uma maior aceitação dentro dos conservadores costumes portugueses. A nível profissional, este contexto levará muitas das alunas do curso de pintura da ESBAP a seguir o caminho do ensino como professoras de desenho, sendo o curso de arquitectura menos adequado a estes propósitos. Esta situação muda sobretudo após a passagem pelo curso de arquitectura da ESBAP de Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto e professor José Marques da Silva, que o frequenta a partir de 1933, sendo esta a primeira mulher a defender uma prova de CODA nesta escola portuense em 1943. Por essa altura frequentavam já o curso outras alunas, mas poucas eram aquelas que o completavam. Entre estas últimas encontram-se as irmãs Helena e Stela Sant’Ana e ainda Maria Carlota Quintanilha, as quais iniciaram os seus cursos durante as décadas de 1930 e 1940. Maria José Marques da Silva desenvolve exclusivamente actividade profissional como arquitecta junto do seu marido, David Moreira da Silva. As irmãs Sant’Ana tomam como várias colegas suas do curso de pintura o caminho do ensino, realizando algumas obras enquanto arquitectas. Por sua vez, Maria Carlota Quintanilha trabalhará como arquitecta junto do seu marido, João José Tinoco, como também enquanto professora. 

Noémia Coutinho tomará os caminhos do ofício da arquitectura de forma distinta das suas colegas mais velhas. Trabalhou inicialmente com Alfredo Viana de Lima e mais tarde no gabinete de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos, sendo neste último que desenvolve a maior parte da sua actividade.

Ao contrário de outros escritórios de arquitectura do Porto, o gabinete Loureiro-Pádua estava estruturado segundo um modelo de trabalho no qual os vários colaboradores beneficiavam de alguma liberdade e independência. Os projectos podiam ser desenvolvidos pelos colaboradores, mas tinham de ter a aprovação interna de José Carlos Loureiro ou de Luís Pádua Ramos. Além disso, alguns dos elementos que compunham cada projecto tinham de seguir os modelos pré-estabelecidos dentro do gabinete, tal como sucedia, por exemplo, com os cadernos de encargos. 

O conjunto residencial do Luso é um dos primeiros projectos no qual este sistema é aplicado, certamente devido à quantidade de trabalho necessário para o seu desenvolvimento. Assim, a partir do projecto inicial elaborado por José Carlos Loureiro, o trabalho a desenvolver para os vários edifícios que compõem este conjunto residencial será distribuído pelos principais arquitectos que trabalham no gabinete. Todas as propostas elaboradas por estes arquitectos são coordenadas por José Carlos Loureiro que não só define os critérios que as congregam entre si, como também realiza diversas alterações às mesmas no mesmo sentido, cabendo-lhe, por exemplo, a definição dos modelos das janelas verticais e das fachadas azulejadas. 

Esta solução de trabalho evolui ao longo da década de 1960 no sentido de uma maior liberdade projectual dos vários arquitectos, aproximando-se do sistema empresarial observado, por exemplo, no gabinete técnico da Hidroeléctrica do Douro, no qual Rogério Ramos, Manuel Nunes de Almeida e João Archer de Carvalho desenvolviam separadamente os vários projectos, mas trabalhavam colectivamente, colaborando mutuamente na sua elaboração. 

Serão vários os projectos elaborados segundo este sistema, sobretudo na década de 1960. É neste contexto que Noémia Coutinho fica encarregada da elaboração do projecto para o Conservatório Regional de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova de CODA em 1966. 

Enquanto edifício institucional, cultural e de ensino, o Conservatório de Aveiro assume um programa complexo que implica necessários cuidados no domínio da escala, da volumetria, da expressão urbana, entre outros. Como forma de resolução destas condicionantes, o programa é disposto num conjunto de volumes fragmentados que se organizam em torno de um pátio rectangular, de um claustro e de um anfiteatro ao ar livre. Esta solução arquitectónica deve muito às novas correntes arquitectónicas então em voga na Europa e em Portugal, as quais propunham uma nova perpectiva sobre a arquitectura moderna na qual os valores da arquitectura tradicional assumem grande relevância. Em Portugal, esta nova perspectiva assumia corpo em obras de arquitectos como Nuno Teotónio Pereira, Victor Palla e Bento d’Almeida, Fernando Távora, João Andresen, Octávio Lixa Filgueiras e, naturalmente, José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Noémia Coutinho, pela sua proximidade a muitos destes arquitectos, expressa os valores dessa nova perspectiva arquitectónica no projecto do Conservatório de Aveiro, conciliando o betão aparente com materiais e com motivos da arquitectura tradicional. Como tal, a fragmentação volumétrica traduz-se num complexo jogo de coberturas em telha, numa fenestração dinâmica e em trabalhos de carpintaria mais ou menos complexos, elementos de projecto que participam no processo de articulação do grande anfiteatro com as restantes componentes do programa, de dimensão mais reduzida. 

Devido a esta anatomia geral, o edifício do Conservatório de Aveiro enquadra-se na sequência de outros projectos do gabinete Loureiro-Pádua, como a Casa Júlio Resende em Gondomar (1961), a Escola Primária da Glória em Aveiro (1964-67) ou a Estalagem Zende em Esposende (1965-72), mas também com outras coevas destas, tais como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas (1961-1970), e o Convento das Irmãs Franciscanas de Calais em Gondomar, de Fernando Távora (1961-71). 

Tal como outras obras do gabinete Loureiro-Pádua, o Conservatório de Aveiro reflecte preocupações comuns à produção arquitectónica deste escritório, situação que se reflecte em elementos como o caderno de encargos, o qual segue o modelo comum a trabalhos ali anteriormente executados, recebendo este projecto, tal como os restantes do gabinete, a chancela final de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos. 

Noémia Coutinho prosseguirá a sua actividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua após a apresentação da sua prova de CODA. Participou em obras como as do Mercado de Barcelos, cujo pátio apresenta semelhanças várias para com o claustro do Conservatório de Aveiro, do edifício do Banco Nacional Ultramarino em Braga, do Banco Borges & Irmão na Rua Infante D. Henrique no Porto, ou do Hotel Solverde na Granja, sempre colaborando de perto com José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos. 

Dedicou sempre especial atenção, por exemplo, ao uso da cor, à relação com as pré-existências e à integração dos novos edifícios na cidade, num contexto de época marcado pela rápida volatilização da arquitectura corrente de matriz oitocentista. 

Noémia Coutinho foi sem dúvida uma arquitecta de destaque na sua época com um percurso diferenciado e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração. A singularidade do seu percurso enquanto uma das primeiras mulheres licenciadas em Arquitectura, assim como os seus contributos no ensino da Arquitectura, permitem reconhecer hoje, a par com a sua obra construída, a importância do seu trabalho. Um percurso que deverá ser valorizado e reconhecido enquanto um importante e significativo legado na história da Arquitectura em Portugal. 

https://www.anteprojectos.com.pt/2023/02/23/noemia-coutinho-ser-arquitecta-nos-anos-60/

Texto escrito por : Pedro Novo e José Pedro Tenreiro

22/02/23

Noémia Coutinho e as mulheres na arquitectura

 


Observador

Historicamente a indústria da arquitectura é predominantemente dominada por homens, encontrando as mulheres reconhecidas dificuldades no seu quotidiano laboral, conflitos de discriminação de género e o seu “esquecimento” em posições de liderança. Num universo de vinte e sete mil arquitectos, cerca de 43% são mulheres, contudo a visibilidade nos meios de comunicação, entre colegas de profissão ou em universidades continua a ser eminentemente masculina, assim como a cultura de atelier continuadamente classista.

Apesar de relevância e proeminência no contexto nacional, onde figuras como Olga Quintanilha, Helena Roseta, Maria Manuel Godinho de Almeida, Gabriela Tomé, Luísa Pacheco Marques, Maria Soledade de Sousa, Ana Vaz Milheiro, Patrícia Santos Pedrosa, Ana Tostões, Inês Lobo, Filipa Roseta, Patrícia Barbas, Mercês Vieira, Helena Vieira, Ana Jara, Andreia Garcia ou Luísa Bebiano, entre muitas outras, têm desenvolvido nas mais diversas áreas de intervenção enquanto arquitetas, não poderão ser ignoradas e a sua singularidade negligenciada pela história.


Maria Noémia Coutinho (1937-2017) foi sem dúvida uma arquiteta de mão cheia, com um percurso diferenciado para a sua época e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração, que viam na pintura e mais tarde no ensino do desenho, o caminho nas Belas Artes fora dos preceitos de uma profissão profundamente masculina. Ingressa no curso de Arquitectura do Porto, em 1955, e inicia o ofício com Viana de Lima e mais tarde no atelier de José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Neste último, fica encarregada da elaboração do projeto para uma “Escola de Iniciação de Arte”, atual Conservatório de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova final de curso em 1966. Noémia Coutinho prosseguirá a sua atividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua, colaborando em obras como o Mercado de Barcelos, Banco Nacional Ultramarino em Braga, Banco Borges & Irmão no Porto, ou o Hotel Solverde na Granja, revelando através do conjunto um percurso sólido e pejado de qualidade tal como demonstrara na escola de Aveiro.


Noémia Coutinho, tal como tantas outras mulheres com distintos e valorosos percursos no ofício da arquitetura, merecem ser lembradas e reconhecidas enquanto insignes mulheres que necessitam de lutar em dobro num “mundo” ainda sem equidade de género. A sensibilização e a promoção da diversidade de género na Arquitetura são catalisadores de inovação e oportunidade profissional. Tal como Patrícia Santos Pedrosa alega, a defesa da mulher não pode ou deve ocorrer enquanto “mulher arquitecta”, mas sim numa esfera universal de “mulher na Arquitetura”, onde a valorização das várias práticas implicadas no fazer arquitectura, cidade e território são primordiais. É urgente e necessário o desenvolvimento de processos de reflexão e ação no âmbito da equidade de género e neste campo o trabalho que a Associação Mulheres na Arquitectura tem desenvolvido nos últimos tempos tem sido muito frutuoso.


A Maria Noémia Coutinho não poderá ser apenas um exemplo inspirador para tantas outras mulheres arquitetas – nós, arquitetos e arquitetas, teremos de ser também Noémias da promoção da equidade de género!


https://observador.pt/opiniao/noemia-coutinho-e-as-mulheres-na-arquitetura/

Lisboa Submersa




Diário de Notícias

Em ano de centenário do nascimento do arquiteto Victor Palla, que bom é recordar Lisboa retratada em Lisboa, Cidade Triste e Alegre. Nesse poema gráfico, editado na década de 50 do Séc. XX pelos arquitetos Victor Palla e Manuel Costa Martins, relata-se uma Lisboa debruçada sobre o Tejo, de uma topografia moldada pela força das águas e de gentes umbilicalmente ligadas ao horizonte atlântico.


Muitos anos passaram e a "nossa" Lisboa é outra, mais do que nunca, carece de ser mais participada cívica e politicamente na sua transformação. A definição do novo "desenho" do Aeroporto e a sua localização numa perspetiva macro de cidade, o "redesenho" das ciclovias da Almirante Reis e a consolidação do Martim Moniz, a solução para os frequentes problemas de mobilidade urbana e agora o flagelo das recorrentes inundações que colocam em causa a qualidade do planeamento urbano das últimas décadas, são hoje complexidades que as atuais "velocidades contemporâneas" não podem justificar.


Face a estes problemas de escalas diferenciadas, a resposta terá de ocorrer consubstanciada em soluções mais sistémicas no desenho da cidade, no espaço público e no edificado. A área metropolitana de Lisboa tem que mobilizar a sua enorme comunidade que pensa o espaço urbano, onde em particular arquitetos, paisagistas e urbanistas deverão ser chamados de forma responsável a colocar o seu saber e competências em conjunto com os outros intervenientes em prol no desenho do território.


A propósito das cheias de 1967 na cidade de Lisboa, Gonçalo Ribeiro Teles afirmava que "a Cidade e o Campo são construções do homem! Construção sábia é quando em benefício da comunidade ou profundamente negativa quando em benefício de alguns..." e é aqui que reside a chave do processo. A tecnocracia deverá imperar não fundando a resolução através do milagre do agora. É no planeamento estruturado, alicerçado em conhecimentos técnicos e apoiado por vontades políticas que o beneficio se repercutirá em favor da comunidade. Na certeza de que das grandes obras ao impasse inseguro, nesses investimentos, distam poucos centímetros políticos.


As recentes inundações em Lisboa vieram mostrar, mais uma vez, que a população terá que se adaptar aos novos tempos ditados pelas alterações climáticas. A cidade funcionará amiúde em situação de fenómenos extremos, pelo que a resposta imediata tem que se estruturar em soluções flexíveis e humanamente exequíveis, permitindo que agora, arquitetos e engenheiros, finalmente assumam um papel preponderante na qualidade de vida das cidades, cabendo por fim aos políticos delinear esforços para que estes possam executar o planeado.

Acordámos sobre uma Lisboa Submersa de incertezas, tal como a Manhã de Virgílio Ferreira.


https://www.dn.pt/opiniao/lisboa-submersa-15491993.html