19/04/16

Duas casas modernas de puro vernacular


A Serra da Estrela sempre foi um território de impossível indiferença e com lógicas e tradições ancestrais. A transumância e as lides das gentes do frio constituíram-se enquanto fonte de construção de estórias e tradições com raízes antigas. O incontornável granito da serra ao ser domado pelo gelo foi a base da construção de “choças” e abrigos de pastores, edificados em frentes recolhidas de montanha com construção de granito e madeira. É com base nestas construções de pastores que as duas casas da Serra da Estrela, desenhadas por Luiz Alçada Baptista na década de 60 do séc. XX demonstram um profundo sentido vernacular, sustentando no carácter o desenho em modelos modernos europeístas, tornando-se num dos mais extraordinários exemplos do modernismo português. As habitações estão carregadas de história relativa à sua família e ao seu incontornável papel no decorrer da vida cultural contemporânea portuguesa onde revelam um legado de valor imaterial de enorme importância. Cumulativamente, as duas casas são também “acompanhadas” por um fabuloso sistema hidráulico centenário de recolha, controlo e transporte das águas por levadas, ajustando todo o empreendimento à singularidade da sua natureza. Perante um enquadramento serrano entre montanhas e uma posição estratégica no território, as casas permitem enunciar um desenho de paisagem equilibrado com uma presença “camuflada” entre árvores, levadas e afloramentos rochosos. Um implantação cuidada, de um desenho generoso na negociação entre a presença do “intruso” e a força da paisagem, revelando o verdadeiro genius loci que o vernacular habilmente nos deixou. Uma resposta inteligente de um desenho arquitectónico complexo, sobre dois hexágonos entre-cruzados e simultaneamente desmaterializados na forma. Uma organização espacial onde se enuncia Frank Lloyd Wright ou Coderch. A casa principal articula dois pisos em 4 níveis de cota diferenciados, açaimando a paisagem no seu interior através de pequenos vãos cirurgicamente ajustados nos paramentos exteriores. Perante a complexidade descrita é desconcertante a fluidez do desenvolvimento e sequência dos espaços, ou na conseguida hierarquização da tipologia nos dois eixos da organização (vertical e horizontal). Se a paisagem e a organização espacial foram detalhadamente trabalhadas, a matéria não foi esquecida. O granito exterior reforça uma expressão solida de dureza serrana contrastando com o minimalismo fragmentado interior através do betão e do enquadramento dos afloramentos rochosos no seu interior. A negação do ângulo recto permitiu a formulação de um contexto habitacional dinâmico mas pejado de artifícios. O mais interessante na corrente “modernista beirã” das construções das décadas de 50 e 60, é denotarem profundas influências com tropicalismos e europeísmos modernos, fundindo-os com leituras baseadas no lugar e na tectónica tradicional. Nas palavras de Kenneth Frampton o pós-modernismo português inconscientemente, (por esta altura e em particular na zona centro de Portugal), constituiu-se no “Regionalismo Critico” acabando mais tarde por Siza Viera ser o seu maior percursor. As duas casas da Serra da Estrela são sem dúvida um caso singular de extraordinária qualidade que merece reconhecimento e nota num território do interior centro do país, onde em outros tempos, a sua qualidade arquitectónica foi força suficiente para que outros não as conseguissem afundar!