30/04/20

Ordem em Transição


 

Em Setembro do ano passado penso ter sido assertivo quando escrevi que a aprovação do Regulamento de Organização e Funcionamento das Estruturas Regionais e Locais da Ordem dos Arquitectos (ROFERLOA) constituir-se-ia na maior transformação orgânica e funcional na Ordem dos Arquitectos desde que a mesma em 1998, deixou de ser Associação dos Arquitectos Portugueses! As transformações assumidas, numa oportunidade conjuntural e por maioria relativa em plenário de Delegados da Ordem dos Arquitectos, permitiram que entremos em período eleitoral, na perspectiva de sete novas secções regionais.

Percebendo a importância do que estava em causa, o Presidente da Assembleia de Delegados, e bem, abriu as assembleias à participação de todos os associados. Abertura que procurava colher junto dos associados, ora privados destes espaços deliberativos, uma leitura transversal e consultiva. Apesar de em Setembro passado eu apelar para que “apesar de o voto ser a nossa maior arma na definição dos caminhos futuros que pretendemos para esta Ordem, não podemos desprezar esta oportunidade”, a participação em assembleias e sessões de esclarecimentos foi residual a Norte e quase nula a Sul. Não havia razões para tremendo desinteresse. A Ordem estava em mudança e merecia uma participação objectiva, informada e mais que tudo, responsável.

As novas secções espalhadas pelo país terão agora de se constituir com corpo executivo, respectivos concelhos de disciplina e mesas de assembleia. A multiplicação de pessoas na estrutura executiva da Ordem não poderá ser desculpa para falta de representatividade no território, mas será factor decisivo na resposta qualitativa, principalmente nos primeiros momentos de mandato. Espera-se que esta transformação permita regulamentar transformações significativas nas estruturas de representação local que permitirão desenvolver o aceleramento da tão desejada equidade entre os associados residentes nos dois grandes centros urbanos e o resto do país.

Uma Ordem que aparentemente sairá musculada e capaz de dar resposta às necessidades dos seus associados, num extenso processo de desfragmentação e povoação de territórios carentes de apoio e proximidade, viverá no período pós-eleições a sua maior dificuldade na restruturação organizacional.

Perante um passo de gigante no escuro, será a ausência de certezas no que concerne à saúde financeira, após esta mutação orgânica, a corda que permitirá à Ordem maniatar-se a si mesma? Na certeza de quem poderá desvendar e resolver este problema serão os novos eleitos, não nos resta outra solução que não seja votarVotar de modo massivo mas sobretudo consciente de que o caminho, mais do que nunca, não será fácil para quem nos vier a liderar!


Jornal Construir nº411 
Abril 2020

23/04/20

Polifonia Regional


Em tempos de retiro obrigatório, a internet é quem mais ordena. Lá atrás, num passado ainda recente, eram as enciclopédias que organizavam e descreviam o conhecimento do mundo. Era nesses calhamaços que descobríamos os reinados, a matemática ou as mais variadas ciências. Uma educação circular que permitia para além do significado da palavra, compreender o conceito ou disciplina em si reportada. O tempo dos livros já lá vai e cá por casa, já reinam mais objectos electrónicos do que livros por ler! O paradigma mudou mas a procura pelo Homem de mundividência continuará para além de qualquer quarentena imposta pelo exterior.

No último fim-de-semana, entremeado por cabrito e batatinhas assadas, aproveitei para rever alguns dos filmes do Michel Giacometti sobre as suas recolhas etcno-musicais dos cânticos que acompanharam o trabalho rural da Beira-Baixa. Em um desses filmes, o narrador relatava que o canto da sacha fora “cantado polifonicamente a três vozes...” de imediato um dos meus filhos, que passava por perto, perguntou pelo significado da expressão “polifonicamente”... A resposta não necessariamente tremida mas embrulhada ao nível de conceito, e apesar de saber perfeitamente que a resposta deveria ser mais complexa, lá lhe expliquei que era qualquer coisa aproximada ao significado de uma melodia cantada a várias vozes. Após a frustração lá fui à internet resolver essa questão de conceito. Entre pesquisas, o que ressaltou não foi a definição mas a expressão assertiva de polifonia que “... em tempos de quarentena, um evento realizado no Fundão, juntou trinta músicos que actuaram desde suas casas em transmissão em directo e via streaming”. O Fundão FicaEmCasa Festival acabou por ser um extraordinário momento de registo dos “bons sons” e sobretudo do eclectismo musical que ainda é produzido por terras da Beira. Apesar de tudo, a nossa parcialidade ainda nos permite reconhecer a importância deste tipo de iniciativas agregadoras de uma comunidade cada vez mais distante dos meios culturais. Um momento inusitado deste ingrato confinamento permitiu o desenvolvimento e reinvenção de um espaço genuíno de partilha e gigantesca generosidade Beirã. Sem preconceitos ou descriminação, o mentor Fernando Tavares espraiou um tapete sobre campo aberto, para que estas estrelas, algumas para mim até então desconhecidas, pudessem brilhar ou sair do anonimato. Agora, só há um caminho para todos estes artistas, um palco comum, mais real, com luzes, fumos e muita música seja ela qual for.

Polifonia é definida pela Wikipédia enquanto “técnica compositiva em que duas ou mais vozes se desenvolvem preservando um carácter melódico e rítmico”.  Para lá do desenho deste conceito, do momento histórico do evento e da ideia de agregação de um punhado de artistas num bem comum, a principal ideia que retenho é que no Fundão, durante três dias estivemos perante uma polifonia regional, onde fica provado que é possível fazer um Festival em que os “copos” não foram a melodia!

02/04/20

... o trigo do joio.




Em Portugal, para a grande maioria das pessoas o arquitecto ainda é o alfaiate de fato à medida, que olha para o cliente como estrela cintilante dos palcos pop. Entendem-no como  artista de devaneios que cria casas onde não se pode morar. Casas  para os flashes das revistas. Não podiam estar mais errados! A profissão não é hermética e as áreas de intervenção abrangem um espectro muito largo para além das áreas directamente ligadas ao projecto, tornando-a assim complexa na sua interpretação. A ideia estereotipada do arquitecto-artista que opera apenas para uma classe endinheirada é pensamento pouco esclarecido sobre a importância do papel da arquitectura nos desígnios das nossas vidas. Profissão que necessita de relações humanas e sobretudo da boa vontade, dedicação e competência de centenas de intervenientes nas mais diferentes especialidades para que a obra chegue ao fim... Sim, sim... Que chegue ao fim!

Se na última década os gabinetes de arquitectura têm dados passos tímidos nos processos e metodologias de projecto para que o mesmo possa ser mais operativo entre especialidades e ausente de erros, será a pandemia do Covid-19 o acelerador dessa uniformização? Irá a obrigatoriedade de trabalho a partir de casa provocar a revisão e adaptação destes mesmos processos e metodologias , assim como na reorganização do trabalho em equipa? Irá o espaço de atelier, lugar de discussão e partilha, onde no confronto surgem as melhores ideias,  desvanecer para o espaço virtual? Estaremos perante o fim das tipologias tradicionais de escritórios? Será este factor importante na gestão dos custos de projecto tornando o projecto de arquitectura mais apetecível financeiramente para o cliente?

Esta experiência global, apesar de surpreendente, obrigou a toda uma estrutura societária a permanecer em casa, provocando a reflexão generalizada nos processos e rentabilidade dos sectores directamente associados aos serviços. Se no final do ano passado, a Microsoft garantia níveis de rentabilidade superiores quando os seus funcionários usufruíssem de fins-de-semana de descanso com três dias, porque não agarrarmos a oportunidade promovida por esta experiência forçada?

São muitas as perguntas sem respostas imediatas, acredito que algo acontecerá, mas nunca revolucionário! Será sim um momento de análise e reposicionamento sobre as metodologias através de ajustamentos que se reflectirão em apenas mais um passo nos caminhos que estávamos todos a trilhar. No entanto, estou certo que esta pandemia embaterá com tal violência e de modo tão veloz que será ela própria, o crivo que separará o trigo do joio neste sector tão frágil.

01/04/20

Between the River and the Sea

In this interview João Luís Carrilho da Graça reflects on how the river and the sea have shaped the city of Lisbon and his work.





Can you tell us about the special relationship that Lisbon has with the river and the sea.

With the river in particular … and with the estuary known as Mar da Palha (Sea of Straw). The city of Lisbon definitely wouldn’t exist if it weren’t for the mouth of the Tagus River, which is an extraordinary space from an ecological and natural perspective.

We often hear people talking about how the light in Lisbon is distinctive. But it isn’t unique, there are many coastal cities near large bodies of water that also have very distinctive lighting, such as Venice. The name Mar da Palha probably stems from the water taking on golden hues at sunrise and sunset and because it is a large mass of water with a significant effect on the city’s lighting.

What about the relationship of the people of Lisbon with the water?

The importance of water and the presence of the river and, further afar, of the sea, which also has a certain influence, is almost always a contrast in terms of the topography on which the city is built. And I find the water and the contours of the valley, and the highest points—the ridgelines—fascinating, because they structure the paths in any territory in the world. Since Lisbon’s topography is so angled and interesting, they continue to be a fundamental reference to this day, probably because they are based on the first paths imaginable in this territory.

This set of high lines—as opposed to the water lines, many of which were already carved out and absorbed by the shape of the city—is the matrix of the city of Lisbon. From a dynamic point of view, we have the river and the port, which is an exceptional creation, and we can then picture the history of the relationship between the city and the river.

Based on your view of the territory and how the water limits and shapes the topography, does your analysis and interpretation become elements that determine how you design near the coastline?

In a way, yes. But I don’t analyze the topography and the relationship with the water and then design something in a rational sense. The interpretation is important and, in one way or another, it informs my designs and the views I have on this relationship. Ever since I started working, I have always thought that this idea of a dynamic relationship between the topography and coastline is important. Reflecting on this boundary between the land and the river from an architectural perspective is a very interesting theme.

What are your thoughts behind the design of the Campo das Cebolas and the Cruise Terminal? Because they are two very defining constructions that are both on this boundary.

Indeed. This was to some extent a coincidence, because there were three public competitions. The first was by invitation only for the urban planning of Boavista, which I won, and my initial design was a step towards this relationship between the city and the river.

The next competition was in 2010, for the Cruise Terminal, which I was also fortunate to win. My idea was to construct it within the space—as though it were a field in an artistic sense—where the former Jardim do Tabaco dock was located, and to build everything from there. It’s as if the building is the result of a more or less telluric movement of the harbor platform and the port, and creates a kind of interaction or dialogue with the city, which is breathtaking.

And the third competition was for Campo das Cebolas. From the start, I thought it would be interesting to have a completely different square from Terreiro do Paço, which is opposite of it and has a palatial design. The site was, in fact, dedicated to street markets, and it had an everyday port where smaller boats from the river or that part of the estuary would all come to dock. The main idea was to create a square with a lot of activity that reflected all the existing intensity and create views of the river and the city.

Finally, could you speak about the emotional relationship that architects have with water. In your work is it more than a logical design issue?
I believe that in Lisbon, the relationship with water is more or less idyllic. It’s an interaction between the city and the water, and, when we walk around the city we are always surprised by the unexpected views overlooking the river, the estuary, the sea. And I believe that this interaction with the setting, with what is built, and with the water is a kind of bond that any person would feel when visiting Lisbon, not just architects.

It makes the city unique in its architecture, in how it is built on top of the territory and in its always surprising correlation with water. Take the Alfama, for example, whose name is related to the many hot springs and baths—the hammams— that existed at the time. Today that is all but forgotten but someday it might be revived; the city has always had a very intense and very interesting relationship with water in every aspect.

This interview has been edited and condensed for clarity.
http://www.rocagallery.com/between-the-river-and-the-sea

Entrevista ocorrida a 11/02/2020 conduzida por Pedro Novo e preparada em conjunto com Diane Gray.

... à deriva


No passado recente, dois prémios Pritzker e uma série de galardões internacionais alteraram de forma brilhante as coordenadas do panorama arquitectónico português, conseguindo potenciar um olhar mais atento por parte de académicos, investidores e críticos internacionais. Os resultados são os esperados, reduzidas portas abertas para o mercado internacional e uma natureza “pouco comercial” sem capacidade de ultrapassar as dificuldades. Perante o panorama de crise interna, a África lusófona permitiu uma sustentabilidade temporária maioritariamente aos pequenos ateliers portugueses, neste oceano de águas turvas.  Actualmente a economia ergue-se, a banca financia cada vez mais os privados e as dinâmicas em torno da construção emergem energicamente em torno da recuperação do imobiliário. Uma recuperação que vem tarde, onde um passado recente de crise empurrou milhares de jovens arquitectos para além-fronteiras e obrigou outros tantos a se reinventar, a alterar o modus operandi da profissão ou a escolher outros caminhos diferenciados da arquitectura. Alguns dirão que é a “ordem natural das coisa”, outros “um mal necessário” para fortalecer a profissão, na certeza porem, quem verdadeiramente perdeu foram os processos de consolidação da arquitectura no nosso território e um sem número de jovens promessas a Pritkzer que hoje contribuem para outras realidades! Perante tempos complexos e sem ancoragens, a incerteza pairará no rumo das academias, na nossa actual cultura arquitectónica e sobretudo no nosso criticismo bacoco!

artigo publicado na 
revista Concreta 2016

30/03/20

O barulho do silêncio!





Durante a curadoria da exposição” Centro Comercial do Restelo - Raúl Chorão Ramalho”, que irá ocorrer na sede da Ordem dos Arquitectos no decorrer deste ano, surgiu-nos uma pergunta que nos parecia pertinente: Porque será que ninguém pinta sobre um Van Gogh? A pergunta parece descabida e fora de contexto, mas não é! Passo a explicar. Esta exposição procura estabelecer um princípio de reflexão sobre a protecção e defesa do património cultural, em particular o património arquitectónico. No caso concreto do Centro Comercial do Restelo, a descaracterização acontece de forma lenta mas obtusa, com introdução de elementos dissonantes e alteração das tipologias originais por parte de alguns dos proprietários. Um pedaço de cidade, constante nas vivências e usos, características reveladoras de que a boa arquitectura é perene e geradora de qualidade de vida mesmo para além da sua contemporaneidade. A sua descaracterização iniciou-se nos finais da década de 80, situação com a qual o arquitecto autor do projecto demonstrará o seu desagrado aquando de uma entrevista promovida pelo arquitecto Manuel Graça Dias no longínquo ano de 94. Apesar da morosidade do processo, a sua reversibilidade é passível de ocorrer, podendo-se requalificar este importante e significativo edificado da história e caracterização do percurso da Arquitectura Portuguesa na segunda metade do século XX.

Ao olharmos para este cenário lisboeta poderiamos estar de algum modo tranquilos relativamente aos demais edificios do século XX, agora também eles, enquadrados enquanto património arquitectónico. Nada mais errados! Entre os pingos da chuva, no espaço de um mês, presenciámos a demolição de duas belas “telas expressionistas” da nossa arquitectura portuguesa: a casa do Magistrados no Fundão da autoria do arquitecto Eduardo Paiva Lopes  e a Panificadora em Vila Real do arquitecto Nadir Afonso. Se no caso do Centro Comercial do Restelo, boa parte dos estragos poderão ser revertidos, na Casa dos Magistrados e na Panificadora apenas ficará a memoria das fotografias e estudos académicos sobre os respectivos edifícios. Apesar das propostas de classificação, da criação de associações de defesa e salvaguarda, aos inumeros artigos em jornais, da realização de exposições ou promoção de debates em tornos da defesa destes dois imóveis, lamentavelmente, não se conseguiu a sensibilização necessária por parte das autoridades competentes na sua preservação.

A demolição destes edifícios é um acto violento sobre a nossa história recente. Não podemos pactuar com estas acções justificando-as com os desígnios de que a cidade tem de se mutar e adaptar às novas circunstâncias da vida. A cidade sempre soube ajustar-se às condicionantes em processos democráticos e respeitadores de quem a habita. A sua sustentabilidade, tal como Joaquim Guedes defende, vive de um “... tecido de projectos singulares em conflito, conciliação e reinvenção permanentes, insubmissos às ideologias e geometrias simplificadoras”. É aqui que persiste a razão e o critério para defesa destes objectos singulares na sua originalidade e nas referências ideológicas que carregam em si. A história nunca pode ser travada, mas é nestes momentos que os decisores devem ter mão firme na defesa de uma cidade democrática e plural, numa cidade agregadora e aberta à diferença, mas sobretudo, numa cidade que respeite a sua história contribuindo assim para o futuro dos seus propósitos.

Perante tão preciosas telas porque teimamos em continuar a dar valentes pinceladas de negro sobre os nossos amados Van Gogh´s?


26/03/20

“Rebenta a Bolha”



No nosso tempo de miúdos, sempre que alguém fazia batota ou não cumpria as regras do jogo das escondidas, gritava-se “rebenta a bolha”. Tal grito permitia parar o decurso do jogo, restituir a ordem através da reunião dos participantes, retomando o jogo com todos novamente em pé de igualdade. A pandemia do Covid-19 acabará por ser, em certa medida, esse grito de restituição da normalidade! Sem certezas de nada e de quanto tempo perdurará este flagelo, será sempre ingrata a premonição contudo os sinais poderão ser lidos!

No passado recente, o abanão do sub prime em 2008 obrigou o governo a redesenhar um conjunto de políticas por forma a garantir o mais rapidamente a estabilidade dos mercados mais afectados, inclusive o imobiliário. A manutenção dessas politicas permitiu o desenvolvimento do país de forma generalizada mas sustentada, operando-se uma recuperação interessante e mais tarde parabenizada por todos os países parceiros europeus.

À falta de financiamento por parte da banca, os benefícios fiscais permitiram a entrada de dinheiro estrangeiro no sector, operando o desenvolvimento e rejuvenescimento dos centros das cidades. Paralelamente, o Decreto-lei nº 53/2014, que serviu para alavancar o sector da construção através da promoção de um regime excepcional e temporário na difícil e desarticulada regulamentação existente, apesar da aceleração da construção, provocou consequentes processos sem controlo na reabilitação do edificado. Se os vistos gold permitiram o arranque do imobiliário nos sectores prime, foi o turismo generalizado e em massa que permitiu o desenvolvimento de forma directa ou indirecta de todas actividades que de si beneficiam e em particular o mercado imobiliário.

Esta onda da recuperação, também ela resultado das acções de charme operadas pelos governos da altura no estrangeiro, proporcionou a cidades como Lisboa e Porto assim como Portugal de forma generalizada tornarem-se “marcas” e lugares apetecíveis para um turismo que olhava a velha Europa enquanto território démodé. Este encanto permitiu a explosão de uma dinâmica muito interessante, contudo rápida de mais para todos se adaptarem. Na última década, nenhuma capital europeia que tenha sofrido deste “boom” turístico teve decrescimento ao nível do número de dormidas, exceptuando Londres em 2018. Lisboa território privilegiado da especulação imobiliária, com um crescimento ao nível das dormidas na ordem do 10% ano muito acima das percentagens nacionais, será dos territórios mais fustigados por este fenómeno do Covid-19.

Os novos agentes do sector do turismo, numa mão cheia de anos, abraçaram a actividade numa lógica de fuga para a frente, encontrando na oportunidade apenas o lucro sem perceberem a globalidade e constrangimentos do sector. A consequente diminuição dos movimentos do turismo irá revelar a inconsistência de várias áreas de um sector que se reinventou na base de um Airbnb liderado por pequenos particulares e sem experiência. Esta estrutura organizacional de alojamento, que na maioria dos casos vive dos subarrendamentos irá, em parte, esvaziar-se colocando rapidamente no mercado milhares de imóveis para arrendamentos. Será aqui que os proprietários perceberão as virtudes dos arrendamentos de longa duração, preferindo rendas ajustadas mas com fiabilidade e futuro nas garantias de estabilidade da sua rentabilidade. Um cenário que alguns não acreditavam que poderia acontecer... Mas aconteceu! Rebenta a bolha!

https://www.diarioimobiliario.pt/Opiniao/Rebenta-a-Bolha

15/02/20

No Fund(ã)o ainda há esperança?




Um edifício na iminência de ser demolido (Casa dos Magistrados) originou uma exposição que está a reconciliar os cidadãos do Fundão com o seu património arquitectónico”, assim noticiava a Ordem dos Arquitectos, nas suas notas informativas, a quando da inauguração da Exposição “Um destino; coisa simples” realizada na Moagem do Fundão no início de 2014. Nessa réstia de esperança, com a contribuição de um alargado grupo de fundanenses, completou-se o inventário de património arquitectónico iniciado pelos arquitectos Carlos Duarte e José Lamas na constituição do PDM do Concelho do Fundão (1985). Inventário, onde se destaca a Casa dos Magistrados, presente na exposição que acabaria itinerante pelas cidades do Fundão, Covilhã, Castelo Branco e Lisboa (entre 2015 e 2016).

A Casa dos Magistrados do Fundão é umas das referências do modernismo tardio português em particular na região da Beira Interior. O arquitecto Eduardo Paiva Lopes quando idealizou o edifício procurou definir uma implantação que respeitasse os alinhamentos do eixo da Avenida. Nos seus três pisos consegue, através do desenho de apenas uma água na cobertura, almejar a cércea do restante edificado implantado junto ao eixo viário. Estes circuitos são organizados por meio de um espaço distribuidor, referência na linha conceptual de grandes vultos da arquitectura mundial como Frank Lloyd Wrigth e Coderch. Tipologia estruturada entre áreas de carácter social e privado com uma organização muito clara ao nível da circulação entre áreas de serviço, social e privada. Talvez uma das melhores tipologias de habitação da cidade nas últimas cinco décadas. Uma lição para tantos arquitectos de algibeira que por aí vão destruindo e desconfigurando o rosto da história de tão bela cidade.

O início da demolição da Casa dos Magistrados, no decorrer desta semana, é a queda de uma das mais interessantes referências da arquitectura modernista da região e da cidade do Fundão. Uma estrutura habitacional robusta e qualificada para receber magistrados, numa época em que a discussão da habitação social era bandeira dos arquitectos. Presença moderna internacional, mas solta dos constrangimentos nacionalistas e politizados. Obra construída em 1967 com projecto do arquitecto Eduardo Paiva Lopes galardoado com o prémio Valmor em 1985. Uma figura incontornável do legado, do que podemos chamar, movimento moderno português.

Se há território em que as questões do património lhe são caras é o do Fundão. Os processos em torno da antiga casa dos Magistrados, do antigo posto de CTT, o Convento, o Externato de Santo António ou até mesmo do Cine-Gardunha são disso prova. A arquitectura moderna só recentemente foi afectada por processos de inventariação, classificação e natural reconhecimento, contudo jamais poderemos alegar desconhecimento ou incompreensão do que está em causa. O debate em torno da defesa do património tem de ser acutilante e praticado de modo qualificado e responsável. Não podemos continuamente validar investimentos, apesar de valiosos e justificados, na preservação do património imaterial e esquecer o outro, o património material! Temos de respeitar esta cidade que nos seus edifícios, esquinas, travessas e avenidas nos formou enquanto homens beirões. Como nunca, precisamos de mundividência nestas matérias pois já provámos tê-la em muitas outras.

29/01/20

...slow down, my friend.





Existem filmes que ainda me assaltam a memória, não pela sua qualidade ou pelas performances dos actores mas pelo momento ou estado de alma em que os vi pela primeira vez. Ainda hoje não percebo da sua importância nas minhas memórias, mas a verdade é que os revivo, no todo ou em partes, constantemente. Na sua recordação acabam por ser uma bússola para pensamentos e reflexões. Entre todos, há um que acaba por ser o que mais me “perturba”, talvez o que melhor revivo, é uma espécie de reflexão contemporânea sobre as actuais life stop motions.

Numa longínqua noite de braseira através do antiquado zapping televisivo, parei na RTP2 onde cruzei olhares com Smoke. Uma bela surpresa de Natal, filme realizado por Wayne Wang e com argumento do maravilhoso Paul Auster. A narrativa centra-se em Brooklyn em torno de uma tabacaria de esquina, o seu proprietário e nas vidas dos clientes quotidianos. Entre conversa de cigarros, o proprietário, Auggie, revela a Paul o seu arquivo de fotografias tiradas entre 1977 e 1990. Fotografias com o mesmo ângulo e focadas na esquina do outro lado da rua. Retratos de um cenário citadino nova-iorquino entre a 3ª Rua e a 7ª Avenida. Mais de quatro mil fotografias sobre a mesma realidade, independentemente das condições climatéricas, do contexto do momento ou das figuras em trânsito. Todos os dias pelas oito horas da manhã, o flash dispara sobre a mesma “realidade”! Contudo apesar da surpresa o mais comovente é o extraordinário diálogo que ocorre entre as duas personagens. Auster não poderia ser mais certeiro!

Paul: I'm not sure I get it, though. I mean, how did you ever come up with the idea to do this ... this project? 
  Auggie: Just come to me. It's my corner after all. I mean, it’s just one little part of the world, but things take place there, too, just like everywhere else. It’s a record of my little spot. 
  Paul: It’s kind of overwhelming. 
  Auggie: You’ll never get it if you don’t slow down, my friend. 
  Paul:  What do you mean? 
  Auggie: I mean, you’re going too fast. You’re hardly even lookin’ at the pictures. 
  Paul: But... they’re all the same.
  Auggie: They’re all the same, but each one is different from every other one. You got your bright mornings and your dark mornings. You got your to summer light and you your autumn light. You got your weekdays and your weekends. You got your people in overcoats and galoshes… and you got your people in t-shirts and shorts. Sometimes the same people, same time different ones. Sometimes the different ones become the same and the same ones disappear. The earth revolves around the sun, and every day, the light from the sun hits the Earth at a different angle. 
  Paul: Slow down, huh? 
  Auggie: That’s what I’d recommend. You know how it is. “Tomorrow and tomorrow and tomorrow… time creeps on its petty pace.”




O mais interessante neste relato é a “verdade” que subsiste na natureza destas imagens. Uma “verdade” de Auggie é certo, mas profundamente crua na sua relação com a arquitectura do espaço e com quem o habita, sem subterfúgios ou manipulação, mas com o natural ruído do acaso! A nossa contemporaneidade já não está preparada para slowmotions, estando a actual incontinência do disparo digital, proporcionalmente associada à quantidade de ferramentas de manipulação. É aqui que subsiste o actual problema da mediatização e na construção mental das realidades. O fotógrafo de arquitectura é hoje uma figura central na revelação ou não da verdade da obra construída. A coerência com a realidade desapareceu nos flashes de uma vontade descomprometida. Sabendo porém que a fotografia acrítica estará num patamar de inacessibilidade, contudo a objectividade será sempre deturpada pelo “autor” fotógrafo. A construção de uma linha estética, onde o olhar de alguém impõe uma marca própria, formata ou ficciona a obra no seu “traço”, com profunda tendência a homogeneizar perversamente o modo como olha para a diferença! A influência que alguns fotógrafos da actualidade constroem entre editores, websites e revistas da especialidade de arquitectura delimitam um star system em que a qualidade da obra não corresponde aos pergaminhos do enquadramento fotográfico. Perante nefasta realidade, o monopólio da mediatização tem de ser interpretado e clarificado no escrutínio da qualidade!


photographer KC Bailey