Existem filmes que
ainda me assaltam a memória, não pela sua qualidade ou pelas performances dos
actores mas pelo momento ou estado de alma em que os vi pela primeira vez.
Ainda hoje não percebo da sua importância nas minhas memórias, mas a verdade é
que os revivo, no todo ou em partes, constantemente. Na sua recordação acabam
por ser uma bússola para pensamentos e reflexões. Entre todos, há um que acaba
por ser o que mais me “perturba”, talvez o que melhor revivo, é uma espécie de
reflexão contemporânea sobre as actuais life stop motions.
Numa longínqua noite
de braseira através do antiquado zapping
televisivo, parei na RTP2 onde cruzei olhares com Smoke. Uma bela surpresa de Natal, filme realizado por
Wayne Wang e com argumento do maravilhoso Paul Auster. A narrativa
centra-se em Brooklyn em torno de uma tabacaria de esquina, o seu proprietário
e nas vidas dos clientes quotidianos. Entre conversa de cigarros, o
proprietário, Auggie, revela a Paul o seu arquivo de fotografias tiradas
entre 1977 e 1990. Fotografias com o mesmo ângulo e focadas na esquina do outro
lado da rua. Retratos de um cenário citadino nova-iorquino entre a 3ª Rua e a
7ª Avenida. Mais de quatro mil fotografias sobre a mesma realidade,
independentemente das condições climatéricas, do contexto do momento ou das figuras
em trânsito. Todos os dias pelas oito horas da manhã, o flash dispara sobre a
mesma “realidade”! Contudo apesar da surpresa o mais comovente é o
extraordinário diálogo que ocorre entre as duas personagens. Auster não poderia
ser mais certeiro!
“ Paul: I'm not sure I get it, though. I mean, how
did you ever come up with the idea to do this ... this project?
Auggie: Just
come to me. It's my corner after all. I mean, it’s just one little part of
the world, but things take place there, too, just like everywhere else.
It’s a record of my little spot.
Paul: It’s
kind of overwhelming.
Auggie: You’ll never get it if you don’t slow down, my friend.
Paul: What do you mean?
Auggie: I
mean, you’re going too fast. You’re hardly even lookin’ at the pictures.
Paul: But... they’re all the same.
Auggie: They’re all the same, but each one is different from every other one.
You got your bright mornings and your dark mornings. You got your to summer light
and you your autumn light. You got your weekdays and your weekends. You got
your people in overcoats and galoshes… and you got your people in t-shirts and
shorts. Sometimes the same people, same time different ones. Sometimes the
different ones become the same and the same ones disappear. The earth revolves
around the sun, and every day, the light from the sun hits the Earth at a
different angle.
Paul: Slow down, huh?
Auggie: That’s what I’d recommend. You know how it is. “Tomorrow and tomorrow
and tomorrow… time creeps on its petty pace.”
O mais interessante
neste relato é a “verdade” que subsiste na natureza destas imagens. Uma
“verdade” de Auggie é certo, mas profundamente crua na sua relação
com a arquitectura do espaço e com quem o habita, sem subterfúgios ou
manipulação, mas com o natural ruído do acaso! A nossa
contemporaneidade já não está preparada para slowmotions, estando a actual
incontinência do disparo digital, proporcionalmente associada à quantidade de
ferramentas de manipulação. É aqui que subsiste o actual problema da mediatização
e na construção mental das realidades. O fotógrafo de arquitectura é hoje uma
figura central na revelação ou não da verdade da obra construída. A coerência
com a realidade desapareceu nos flashes
de uma vontade descomprometida. Sabendo porém que a fotografia acrítica estará
num patamar de inacessibilidade, contudo a objectividade será sempre deturpada
pelo “autor” fotógrafo. A construção de uma linha estética, onde o olhar de
alguém impõe uma marca própria, formata ou ficciona a obra no seu “traço”, com profunda
tendência a homogeneizar perversamente o modo como olha para a diferença! A
influência que alguns fotógrafos da actualidade constroem entre editores,
websites e revistas da especialidade de arquitectura delimitam um star system em que a qualidade
da obra não corresponde aos pergaminhos do enquadramento fotográfico. Perante
nefasta realidade, o monopólio da mediatização tem de ser interpretado e
clarificado no escrutínio da qualidade!