Conta-se que Ezra Stoller, durante uma entrevista, quando
questionado acerca da qualidade das suas fotografias sobre o edifício Seagram de Mies van der Rohe, terá
respondido sem hesitação que a «fotografia não é realidade».
O interesse desta resposta passa pelo entendimento do
papel da imagem enquanto veiculo na transmissão de realidades com potencial
estético. Se Stoller era admirado pela maioria dos interveniente do movimento
moderno, não seria apenas pela sua técnica mas sobretudo pelo reconhecimento da
natureza de cada edifício no seu comportamento com a envolvente, luz exterior e
seus habitantes. As suas fotografias ainda hoje são admiradas por revelarem uma interpretação de
carácter do edifício até então desconhecido, demasiadas vezes ignoradas pelos
próprios autores na concepção das obras fotografadas. A revelação de novas perspectivas ou de naturezas obscuras permitem à fotografia
adquirir cada vez mais importância na expressão da realidade
arquitectónica. A dificuldade de aproximar à bidimensionalidade a
experiência do sentir, cheirar, ver e estar, baliza-se no limiar onde a
fotografia poderá adquirir diferentes caminhos nesta transposição: uma atitude
representativa, expressionista ou relatora. A esta ideia sobrepõe-se a de
Stoller, que entende que «não podemos ter boas fotografias de arquitectura sem
boa arquitectura» .(2)
A riqueza da representação fotográfica tem por base uma
intrínseca capacidade desta acrescentar potencial simbólico e enriquecer o
vocabulário visual de um futuro visitante. A representação da expressão
revela-se através da técnica e do olhar do fotógrafo. No entanto, a sua
eficiência não poderá mitigar uma verdade que se encerra em alvenarias, vãos,
ladrilhos e no talento dos seus executantes e projectistas. O mau é
indisfarçável à objectiva. Mas a dúvida sobre a verdade representativa da
imagem já pouco importa, procuramos hoje algo para além da realidade, onde as
ínfimas possibilidades de manipulação tecnológica permitem aproximar com
elevado grau de rigor níveis de perfeição que a realidade não comprova. Neste
contexto, com facilidade se enquadram as visões ficcionadas do trabalho de
Edgar Martins para o New York Times, funcionando como último recurso
para poder atingir objectivos conceptuais que o edificado não revela ou
encontrar a expressão que não fora inicialmente imaginada. A ficção desenha
mundos para lá do olhar expectante em contextos contemporâneos de vazios e
não-lugares, onde Edgar Martins é pescador de águas profundas.
(3)
Quantas vezes nos deparamos com igual qualidade entre os
desenhos de projecto e o produto final? São exemplo os casos iconográficos:
pavilhão de Barcelona de Mies van der Rohe ou a Igreja de Rouchamp de Le
Corbusier. Por outro lado, é extraordinário o papel que a fotografia adquire na
capacidade de potenciar aquilo que os desenhos da realidade construída não
transmitem. Fácil será imaginar a dificuldade que Frank Ghery teria em poder
expressar a quem desconhecesse o edifício a dimensão e natureza do museu
Guggenheim em Bilbau apenas por desenhos ou esquissos. Neste caso particular, é
paradigmático a capacidade de alavancagem que a fotografia possibilita na
divulgação de expressão e arrebatadoras vivências idílicas. Talvez conheçamos
melhor a imagem do museu Guggenheim do que a obra em si. Mesmo os que ousaram
entrar no museu de Bilbau, quando confrontados numa suposta representação da
sua configuração, com certeza haverá uma imposição das suas memórias
fotográficas face às memórias experienciadas in loco.
Durante décadas o desenho foi tido como fundamental para
pensar a arquitectura ajustando-se como atalho entre a ideia e o construído,
assumindo o desenho (mais reconhecidamente com Álvaro Siza Vieira) um lugar
imprescindível na afirmação de autoria. Entre gerações reconheceram-se lógicas
conceptuais, princípios e regras deterministas de estéticas. Foi assim que se
definiram correntes e metodologias. Reconhecidamente, a nível nacional, a
escola do Porto esbateu-se no percurso académico e científico do estudo
arquitectónico português. As referências existem, mas o bastião da resistência
esfumou-se entre as novas tecnologias e velocidade de informação. O academismo
aprisionou-se na história e não soube estender a vela ao sabor dos ventos. O
advento das novas tecnologias digitais permitiu uma profunda revolução no
entendimento da “verdade” da realidade.
Em sobreposição ao desenho, a incontinência do disparo
digital que proporcionou uma capacidade quantitativa, carregando as imagens com
uma superficialidade que responde proporcionalmente aos fenómenos de
mediatização tomados por modas e tendências. Os factos antes insofismáveis, que
perante o olhar do fotógrafo eram captados para suportes de posterior
reprodução, são hoje manipulados através de processos de “limpeza” ocultando ou
acrescentando elementos observados. Projectando o fundamental da analise
critica da obra construída, “no depois”. A coerência arrefeceu nos flashes de uma vontade descomprometida.
No esquecimento reside o papel do mérito
fotográfico, onde está recolhido o olhar do fotógrafo. A sua capacidade
comunicativa será fundamental para o verdadeiro entendimento da realidade objectivada.
Quantas vezes deparámos com diferenças abismais de escala entre a realidade
presenciada e as memorias que as imagens foram incapazes de sugerir? Quantos de
nós aquando da visita do Tempietto de São Pedro em Roma, fomos surpreendidos
por uma escala outrora manipulada por fotografias despidas de presença humana? Espaços
que pela presença humana jamais terão os silêncios de relatos de imagens a
preto e branco, ou o eco do Panteão de Roma. A fotografia de arquitectura sem
um enquadramento artístico ou jornalístico permite-lhe navegar em terra de
ninguém, conduzindo o fotógrafo à manipulação de uma verdade por nós
desconhecida e provavelmente nunca comprovada. A leitura fotográfica acrítica,
em negação da imagem propagandista onde o reconhecimento autoral é assumido,
não passa de um conceito estético enquanto meta inacessível.
O star system da
arquitectura não abdica da “conclusão” da sua obra sem o olhar do “autor” fotógrafo,
impondo este uma marca própria, formatando ou ficcionando a obra ao seu jeito. Por outro lado, essa mesma personalização
tenderá, perversamente, a homogeneizar também o modo como vemos o “estilo” das
diferentes arquitecturas. A vontade de ser reconhecido entre muitos faz da
encomenda da reportagem fotográfica de arquitectura como o mais eficaz veiculo
de difusão cultural e massificação mediática entre profissionais, estudantes e
demais interessados no tema. Entre arquitectos, a qualidade final da obra é
esbatida no “traço” do disparo do fotógrafo. O papel e influência que alguns
fotógrafos desenham entre editores e revistas da especialidade delimitam um star system em que a qualidade da obra
provavelmente não corresponde aos pergaminhos que o enquadramento fotográfico e
editorial potenciam. Como diria Pedro Bandeira « boas ou más arquitecturas
partilham o mesmo glamour da obra elevada à sua condição mediática», definindo
este período de falácia mediática como espaço temporal de fama efémera. Perante
nefasta realidade, o monopólio da mediatização tem de ser interpretado e
clarificado no escrutínio da qualidade. A dúvida subsiste!
(4)
(1) Ezra Stolle,
Terminal do Aeroporto JFK ,da autoria de Eero Saarinen, Nova Iorque, 1962,
Impressão em papel gelatina e prata © Ezra Stoller, Cortesia galeria Yossi
Milo, Nova Iorque
(2) Ezra Stoller: Modern Architecture Photographs by Ezra
Stoller. New York:
Harry N. Abrams, Inc. Publishers, 1990, p. 6
(3)
Martins, Edgar, A Metaphysical Survey of British Dwellings series, The
Photographers' Gallery, Londres 2010
(4) Fernando
Guerra, Capela em Netos, Portugal, da autoria de Pedro Mauricio Borges, 2010.