Anteprojectos
Embora a profissão de arquitecto ainda enfrente desafios
significativos em relação à diversidade de género, há esperança
de que a sua equidade se torne uma realidade cada vez mais
presente nesta área, permitindo que mulheres arquitectas sejam
verdadeiramente reconhecidas pelo seu trabalho e dedicação a tão
nobre arte. Comparativamente, a menor remuneração das mulheres,
a falta de promoção e a exclusão de oportunidades de liderança são
efectivamente factores de reflexão e consequentemente desafios que
aumentam de complexidade quando confrontados com a conciliação
da vida profissional e familiar.
Há mais de 50 anos, as noções sociais eram uma barreira acrescida,
e o trabalho de uma arquitecta por conta de outrem num gabinete
de arquitectura nem sempre era visto com naturalidade.
Exemplo paradigmático do confronto com esta realidade
é o percurso de Maria Noémia Mourão do Amaral Coutinho nascida
em 1937. Noémia Coutinho ingressa no curso de Arquitectura
da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) em 1955,
numa ocasião em que a frequência daquele era ainda
essencialmente masculina.
Com efeito, poucas foram as alunas do curso de arquitectura
anteriores a Noémia Coutinho. As jovens alunas da ESBAP assumiam
frequentemente a preferência pelo curso de pintura, frequentado
há várias décadas por destacadas artistas portuenses, como
Sofia e Aurélia de Sousa, entre outras. Esta escolha dever-se-ia
em parte à conotação social dos diferentes ofícios, encontrando
o da pintura uma maior aceitação dentro dos conservadores
costumes portugueses. A nível profissional, este contexto levará
muitas das alunas do curso de pintura da ESBAP a seguir o caminho
do ensino como professoras de desenho, sendo o curso de
arquitectura menos adequado a estes propósitos. Esta situação
muda sobretudo após a passagem pelo curso de arquitectura da
ESBAP de Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto e professor
José Marques da Silva, que o frequenta a partir de 1933, sendo
esta a primeira mulher a defender uma prova de CODA nesta escola
portuense em 1943. Por essa altura frequentavam já o curso outras
alunas, mas poucas eram aquelas que o completavam. Entre estas
últimas encontram-se as irmãs Helena e Stela Sant’Ana e ainda
Maria Carlota Quintanilha, as quais iniciaram os seus cursos durante
as décadas de 1930 e 1940. Maria José Marques da Silva desenvolve
exclusivamente actividade profissional como arquitecta junto do seu
marido, David Moreira da Silva. As irmãs Sant’Ana tomam como várias
colegas suas do curso de pintura o caminho do ensino, realizando
algumas obras enquanto arquitectas. Por sua vez, Maria Carlota
Quintanilha trabalhará como arquitecta junto do seu marido,
João José Tinoco, como também enquanto professora.
Noémia Coutinho tomará os caminhos do ofício da arquitectura
de forma distinta das suas colegas mais velhas.
Trabalhou inicialmente com Alfredo Viana de Lima e mais tarde
no gabinete de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos, sendo
neste último que desenvolve a maior parte da sua actividade.
Ao contrário de outros escritórios de arquitectura do Porto,
o gabinete Loureiro-Pádua estava estruturado segundo um modelo
de trabalho no qual os vários colaboradores beneficiavam de alguma
liberdade e independência. Os projectos podiam ser desenvolvidos
pelos colaboradores, mas tinham de ter a aprovação interna
de José Carlos Loureiro ou de Luís Pádua Ramos. Além disso,
alguns dos elementos que compunham cada projecto tinham
de seguir os modelos pré-estabelecidos dentro do gabinete,
tal como sucedia, por exemplo, com os cadernos de encargos.
O conjunto residencial do Luso é um dos primeiros projectos
no qual este sistema é aplicado, certamente devido à quantidade
de trabalho necessário para o seu desenvolvimento. Assim, a partir
do projecto inicial elaborado por José Carlos Loureiro, o trabalho
a desenvolver para os vários edifícios que compõem este conjunto
residencial será distribuído pelos principais arquitectos que
trabalham no gabinete. Todas as propostas elaboradas por estes
arquitectos são coordenadas por José Carlos Loureiro que não só
define os critérios que as congregam entre si, como também realiza
diversas alterações às mesmas no mesmo sentido, cabendo-lhe,
por exemplo, a definição dos modelos das janelas verticais
e das fachadas azulejadas.
Esta solução de trabalho evolui ao longo da década de 1960
no sentido de uma maior liberdade projectual dos vários arquitectos,
aproximando-se do sistema empresarial observado, por exemplo,
no gabinete técnico da Hidroeléctrica do Douro, no qual Rogério
Ramos, Manuel Nunes de Almeida e João Archer de Carvalho
desenvolviam separadamente os vários projectos, mas trabalhavam
colectivamente, colaborando mutuamente na sua elaboração.
Serão vários os projectos elaborados segundo este sistema,
sobretudo na década de 1960. É neste contexto que Noémia
Coutinho fica encarregada da elaboração do projecto para
o Conservatório Regional de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro,
o qual apresentará como prova de CODA em 1966.
Enquanto edifício institucional, cultural e de ensino, o Conservatório
de Aveiro assume um programa complexo que implica necessários
cuidados no domínio da escala, da volumetria, da expressão urbana,
entre outros. Como forma de resolução destas condicionantes,
o programa é disposto num conjunto de volumes fragmentados
que se organizam em torno de um pátio rectangular, de um claustro
e de um anfiteatro ao ar livre. Esta solução arquitectónica deve muito
às novas correntes arquitectónicas então em voga na Europa
e em Portugal, as quais propunham uma nova perpectiva sobre
a arquitectura moderna na qual os valores da arquitectura tradicional
assumem grande relevância. Em Portugal, esta nova perspectiva
assumia corpo em obras de arquitectos como Nuno Teotónio Pereira,
Victor Palla e Bento d’Almeida, Fernando Távora, João Andresen,
Octávio Lixa Filgueiras e, naturalmente, José Carlos Loureiro
e Pádua Ramos. Noémia Coutinho, pela sua proximidade a muitos
destes arquitectos, expressa os valores dessa nova perspectiva
arquitectónica no projecto do Conservatório de Aveiro, conciliando
o betão aparente com materiais e com motivos da arquitectura
tradicional. Como tal, a fragmentação volumétrica traduz-se num
complexo jogo de coberturas em telha, numa fenestração dinâmica
e em trabalhos de carpintaria mais ou menos complexos, elementos
de projecto que participam no processo de articulação do grande
anfiteatro com as restantes componentes do programa, de dimensão
mais reduzida.
Devido a esta anatomia geral, o edifício do Conservatório de Aveiro
enquadra-se na sequência de outros projectos do gabinete
Loureiro-Pádua, como a Casa Júlio Resende em Gondomar (1961),
a Escola Primária da Glória em Aveiro (1964-67) ou a Estalagem
Zende em Esposende (1965-72), mas também com outras coevas destas, tais como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa,
de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas (1961-1970), e o Convento
das Irmãs Franciscanas de Calais em Gondomar, de Fernando Távora
(1961-71).
Tal como outras obras do gabinete Loureiro-Pádua, o Conservatório
de Aveiro reflecte preocupações comuns à produção arquitectónica
deste escritório, situação que se reflecte em elementos como
o caderno de encargos, o qual segue o modelo comum a trabalhos
ali anteriormente executados, recebendo este projecto, tal como
os restantes do gabinete, a chancela final de José Carlos Loureiro
e Luís Pádua Ramos.
Noémia Coutinho prosseguirá a sua actividade dentro do gabinete
Loureiro-Pádua após a apresentação da sua prova de CODA.
Participou em obras como as do Mercado de Barcelos, cujo pátio
apresenta semelhanças várias para com o claustro do Conservatório
de Aveiro, do edifício do Banco Nacional Ultramarino em Braga,
do Banco Borges & Irmão na Rua Infante D. Henrique no Porto,
ou do Hotel Solverde na Granja, sempre colaborando de perto
com José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos.
Dedicou sempre especial atenção, por exemplo, ao uso da cor,
à relação com as pré-existências e à integração dos novos edifícios
na cidade, num contexto de época marcado pela rápida volatilização
da arquitectura corrente de matriz oitocentista.
Noémia Coutinho foi sem dúvida uma arquitecta de destaque
na sua época com um percurso diferenciado e disruptivo dentro
dos costumes conservadores da sua geração. A singularidade
do seu percurso enquanto uma das primeiras mulheres licenciadas
em Arquitectura, assim como os seus contributos no ensino
da Arquitectura, permitem reconhecer hoje, a par com a sua obra
construída, a importância do seu trabalho. Um percurso que deverá
ser valorizado e reconhecido enquanto um importante e significativo
legado na história da Arquitectura em Portugal.
https://www.anteprojectos.com.pt/2023/02/23/noemia-coutinho-ser-arquitecta-nos-anos-60/
Texto escrito por : Pedro Novo e José Pedro Tenreiro