29/06/23

Fernando Távora "Longos dias têm cem anos"





26/06/2023

 Há precisamente 30 anos (1993), ainda eu não imaginava que me iria deslumbrar pelo mundo da arquitectura, inaugurava em Lisboa, mais precisamente no Centro Cultural de Belém uma exposição monográfica em torno da vida e obra de Fernando Távora. Teria desejado participar nesse singular momento, com a propriedade e interesse de hoje, na consciência do significado e da importância que a obra de Fernando Távora tem no panorama da arquitectura e cultura portuguesa no séc.XX.

 

A exposição intitulada “Percurso” presenteava-nos a abertura com um terno e expressivo manifesto, um Távora de braços estendidos onde afirmava: “Quereríamos que esta exposição fosse entendida como um apelo à Vida, como uma manifestação de esperança no destino do homem e como uma apaixonada afirmação do significado profundo da Arquitectura.” Fernando Távora e a sua equipa, resumiam os seus 70 anos de vida numa exposição construída em torno dos seus objectos pessoais, das suas memórias, dos seus livros, dos seus desenhos e de 22 projectos de arquitectura. Os possíveis de expor, entre muitos. Um marco que merecia ser repetido possibilitando aos mais jovens, hoje, saborear o traço do mestre com um outro olhar para além do écran do ipad.

 

Recentemente, a propósito do lançamento do Mapa da Arquitectura de Fernando Távora, a Fundação Marques da Silva, generosamente, disponibilizou um vídeo sobre a inauguração da referida exposição. Curiosamente Fernando Távora confessava o desejo de que dali a 70 anos (em 2063) se realizasse uma nova exposição sobre os 70 anos seguintes àquele data. Alicerçando a ideia de que por essa altura, ainda estaria vivo e o dia da inauguração, dessa segunda exposição, seria o revisitar das “recordações, realidades e sonhos, o passado e o futuro, factos, lugares, imagens, ideias e formas, gentes, viagens e leituras, assim se construindo a vida e obra de um homem e de um arquitecto”. Exposição que a acontecer em 2063, será com certeza um momento importante de reflexão histórica e de efectivo entendimento de uma geração charneira que fundou a “Escola do Porto” e percorreu os caminhos do movimento moderno em Portugal. Estando 2063 ainda longe, no actual ano de centenário do nascimento de Fernando Távora (1923-2005), será incontornável celebrar a obra de um dos maiores vultos da Arquitectura contemporânea Portuguesa. Que entre poucos, soube interpretar a arquitectura moderna internacional e “ajusta-la” ao contexto da arquitectura tradicional portuguesa. Apesar da importância desta irrepetível ocasião, e já decorrido metade do ano, são poucas as iniciativas de homenagem a Távora. Para além da visita guiada do arquitecto João Paulo Rapagão e do historiador Joel Cleto ocorrida logo no início do ano ou o Curso Breve “Arquitecto Fernando Távora: consagrar a vida à verdade” pelo arquitecto Luís Aguiar Branco a decorrer no mês de Maio no Auditório da Biblioteca Almeida Garrett no Porto, não se vislumbram mais iniciativas nos próximos meses. Confesso que esperava um 2023 intenso na revisitação da obra e vida de Fernando Távora, não só pelas razões já referidas, mas sobretudo por entender que as gerações mais novas desejam descobrir a obra de alguém que viveu a disciplina tão intensamente e foi incontornável na definição dos caminhos do movimento moderno por terras lusitanas. A escassez de iniciativas até à data é notória, contudo espero ser surpreendido por uma grande exposição recapitulativa de centenário à imagem da exposição de 1993.

 

Sabendo do pouco tempo que nos resta, aguardo com expectativa as iniciativas que as entidades responsáveis pela promoção e valorização da arquitectura poderão estar a preparar no sentido de dignificar a obra do consagrado arquitecto em ano de centenário do seu nascimento. Espero não estarmos perante o desperdiçar de uma oportunidade única de justamente fazer história, tal como Agustina Bessa-Luís definia no seu “longos dias têm cem anos”, “E os longos dias passavam, carregados de justo sentimento pelas coisas que devíamos fazer de maneira lesta e durável. Às vezes, não se faziam nunca.”

05/05/23

Arquitectura a 6%


https://www.flipsnack.com/rcamacho/construir-481/full-view.html

21/04/2023 

O Regime Jurídico da Reabilitação Urbana (RJRU) define a “Reabilitação Urbana” enquanto obras de “construção, reconstrução, ampliação, alteração, conservação ou demolição dos edifícios”, constituindo-se assim num conceito abrangente e não circunscrito apenas à “reabilitação de edifícios”. A alteração de paradigma, agora proposta no programa Mais Habitação, no que diz respeito à constituição de “empreitadas de reabilitação” urbana alterando para empreitadas de “reabilitação de edifícios”, vem restringir a aplicação da taxa reduzida (6%) a apenas uma diminuta área da reabilitação urbana, ultrajando o espírito do RJRU e da Lei de Bases da Habitação! Tornando-se assim numa medida violentíssima e profundamente redutora na constituição de novas operações de reabilitação urbana em áreas não condicionadas por Plano Director Municipal, as chamadas áreas de Reabilitação Urbana (ARU).

 

Se entendo que esta estratégia será uma oportunidade perdida no que diz respeito à promoção do investimento em trechos de cidade não consolidados e áreas rurais, defendo que a verdadeira alteração na aplicação do regime do IVA deveria também ocorrer na fase de projeto, ajustada aos princípios constitucionais. Defendo também a implementação da taxa de regime reduzido transversal a toda a construção (reabilitação) nas suas diferentes fases. A engrenagem de todo este processo ocorreria na execução da prestação de serviços de arquitetura e correspondentes especialidades, apenas e só, para operações relativas a habitação própria, tal como já ocorre em congéneres europeus. Para o cidadão que procura construir a sua residência, a carga fiscal associada (23%), não sendo passível de dedução, jamais será ignorada no momento da tomada de decisão do investimento. Esta alteração, se por um lado facilitará o acesso à habitação através da cobrança de imposto reduzido no projeto e na construção, a introdução de 6% de IVA no custo dos projetos, irá de imediato tornar mais competitiva a prestação destes serviços. Esta medida, não introduziria qualquer alteração orgânica, na tão necessária estruturação/regulamentação dos honorários na arquitetura, contudo possibilitará no imediato e sobre um significativo campo da prestação dos serviços de arquitetura, o aceleramento na sua contratação, defendendo consequentemente esta classe profissional.

 

Com a concretização desta medida, o Estado, preconizava os preceitos há tanto esquecidos no 65º artigo da nossa Constituição, onde “todos têm direito, (...) a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar.” Incumbindo-se de “estimular (…) o acesso à habitação própria ou arrendada” e consequentemente adoptando “(...) uma política tendente a estabelecer um sistema (…) de acesso à habitação própria.” Na concretização destes preceitos, o Estado mais uma vez ajustaria ao concreto a Lei de Bases da Habitação de 2019 onde integra a “reabilitação urbana” na Politica Nacional de Habitação.

 

As medidas recentemente apresentadas pelo Estado através do Programa Mais Habitação, promovem um retrocesso silencioso, mas significativo, com a introdução de um “crivo” sobre o benefício da aplicação do código do IVA nas obras de requalificação e reabilitação. Pelo contrário, o Estado deveria ser mais ambicioso e consequente, introduzindo 6% de IVA em toda a reabilitação e nos custos dos projetos de arquitetura quando destinados para habitação própria.

09/03/23

Sustentável Arquitecto



Expresso

Hoje, a profissão de arquiteto tem uma exigência elevada e é por isso que a sua formação tem um percurso mais longo do que o normal – uma licenciatura acrescida da obtenção do grau de mestre. Todavia, e ao contrário de outras, a estruturação da carreira de arquiteto não reflete essa exigência e especificidade, nem no setor público nem no setor privado. Assim, são os serviços de arquitetura os que mais sofrem com esta omissão, tornando a concorrência desleal, inibindo os ateliês/escritórios de recursos para entrar no mercado internacional e deixando os próprios arquitetos reféns de um sistema de honorários/remuneração onde a arquitetura é a atividade mais mal remunerada de todo o ecossistema da construção.

Por outro lado, o processo administrativo transformou-se num labirinto onde se entra e do qual não se consegue sair, tornando evidente a urgência de se exigir uma burocracia moderna, que utilize apenas os meios indispensáveis para o funcionamento do Estado. Para que isso aconteça, os arquitetos não podem cair no engodo de se culparem a si próprios, desde logo não aceitando responsabilidades insustentáveis nem, tampouco, permitirem que se coloque o arquiteto projetista contra o arquiteto das entidades licenciadoras e vice-versa – isso não faz sentido porquanto o problema reside numa legislação fragmentada e numa organização disfuncional, que a desmaterialização ainda ajudou a complicar.

Nesta conjuntura, os arquitetos encontram-se perante um dilema, ou aceitam o atual panorama, ou assumem que é tempo de definirem um novo futuro.

O arquiteto contemporâneo, sustentável em todas as suas dimensões, é, tão simplesmente, um arquétipo de 28 mil colegas. Do responsável do ateliê ao que trabalha para outros; de quem está na função pública ou no setor privado; é projetista, professor, formador, curador, investigador, promotor ou fiscal; sonha sempre em cada projeto, mas também sofre dia após dia com a dificuldade da profissão.

A Ordem dos Arquitectos (OA) escolheu os Açores para, neste início de março, acolher o 16.ª Congresso dos Arquitetos, que decorrerá sob o tema da sustentabilidade. Para suscitar o debate, cerca de 300 arquitetos, envolvidos na atividade associativa, subscreveram um texto denominado de “Sustentável Arquiteto”, uma reflexão centrada na arquiteta e no arquiteto, que se entende ser mais pertinente e urgente do que a pretendida pelo alinhamento oficial do congresso, focada quase apenas na dimensão programática da arquitetura. Trata-se de um documento congregador e focado no futuro, ponderando sobre o momento atual dos arquitetos, as suas principais dificuldades e problemas.

E o que pretende o arquiteto atual? Em primeiro lugar, que o conceito de sustentável no arquiteto seja requisito ex-ante da arquitetura sustentável. Que se desconstrua o labirinto burocrático em que o País se envolveu, desejando que a Ordem dos Arquitectos exija medidas concretas ao Estado, mas num contexto de responsabilidade, equilíbrio e bom senso. Que a Arquitetura e os seus serviços sejam reconhecidos como de interesse público, permitindo que os arquitetos reclamem a sua função social. Que a voz dos arquitetos se faça ouvir nas questões de impacto nacional, regional ou local, impelindo a Ordem dos Arquitectos a um papel muito mais interveniente, transformando esta estratégia num correspondente plano de ação para o próximo triénio.

https://expresso.pt/opiniao/2023-03-01-Sustentavel-Arquiteto-4e317b24?fbclid=IwAR0F3A9CCOoEzE9Qo_US8ZIuwhGG39gRKm2nvNmomahoRQUwIpHqHhEYYkM

Texto escrito por : Arquitetos Avelino Oliveira, Susana Gouveia Jesus, Cláudia Gaspar, Luís Fernando Matos, Paula Torgal, César Lima Costa, Florindo Belo Marques e Pedro Novo

27/02/23

Noémia Coutinho, ser arquitecta nos anos 60



Anteprojectos 

Embora a profissão de arquitecto ainda enfrente desafios significativos em relação à diversidade de género, há esperança de que a sua equidade se torne uma realidade cada vez mais presente nesta área, permitindo que mulheres arquitectas sejam verdadeiramente reconhecidas pelo seu trabalho e dedicação a tão nobre arte. Comparativamente, a menor remuneração das mulheres, a falta de promoção e a exclusão de oportunidades de liderança são efectivamente factores de reflexão e consequentemente desafios que aumentam de complexidade quando confrontados com a conciliação da vida profissional e familiar.

 Há mais de 50 anos, as noções sociais eram uma barreira acrescida, e o trabalho de uma arquitecta por conta de outrem num gabinete de arquitectura nem sempre era visto com naturalidade. 

Exemplo paradigmático do confronto com esta realidade é o percurso de Maria Noémia Mourão do Amaral Coutinho nascida em 1937. Noémia Coutinho ingressa no curso de Arquitectura da Escola Superior de Belas Artes do Porto (ESBAP) em 1955, numa ocasião em que a frequência daquele era ainda essencialmente masculina. 

Com efeito, poucas foram as alunas do curso de arquitectura anteriores a Noémia Coutinho. As jovens alunas da ESBAP assumiam frequentemente a preferência pelo curso de pintura, frequentado há várias décadas por destacadas artistas portuenses, como Sofia e Aurélia de Sousa, entre outras. Esta escolha dever-se-ia em parte à conotação social dos diferentes ofícios, encontrando o da pintura uma maior aceitação dentro dos conservadores costumes portugueses. A nível profissional, este contexto levará muitas das alunas do curso de pintura da ESBAP a seguir o caminho do ensino como professoras de desenho, sendo o curso de arquitectura menos adequado a estes propósitos. Esta situação muda sobretudo após a passagem pelo curso de arquitectura da ESBAP de Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto e professor José Marques da Silva, que o frequenta a partir de 1933, sendo esta a primeira mulher a defender uma prova de CODA nesta escola portuense em 1943. Por essa altura frequentavam já o curso outras alunas, mas poucas eram aquelas que o completavam. Entre estas últimas encontram-se as irmãs Helena e Stela Sant’Ana e ainda Maria Carlota Quintanilha, as quais iniciaram os seus cursos durante as décadas de 1930 e 1940. Maria José Marques da Silva desenvolve exclusivamente actividade profissional como arquitecta junto do seu marido, David Moreira da Silva. As irmãs Sant’Ana tomam como várias colegas suas do curso de pintura o caminho do ensino, realizando algumas obras enquanto arquitectas. Por sua vez, Maria Carlota Quintanilha trabalhará como arquitecta junto do seu marido, João José Tinoco, como também enquanto professora. 

Noémia Coutinho tomará os caminhos do ofício da arquitectura de forma distinta das suas colegas mais velhas. Trabalhou inicialmente com Alfredo Viana de Lima e mais tarde no gabinete de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos, sendo neste último que desenvolve a maior parte da sua actividade.

Ao contrário de outros escritórios de arquitectura do Porto, o gabinete Loureiro-Pádua estava estruturado segundo um modelo de trabalho no qual os vários colaboradores beneficiavam de alguma liberdade e independência. Os projectos podiam ser desenvolvidos pelos colaboradores, mas tinham de ter a aprovação interna de José Carlos Loureiro ou de Luís Pádua Ramos. Além disso, alguns dos elementos que compunham cada projecto tinham de seguir os modelos pré-estabelecidos dentro do gabinete, tal como sucedia, por exemplo, com os cadernos de encargos. 

O conjunto residencial do Luso é um dos primeiros projectos no qual este sistema é aplicado, certamente devido à quantidade de trabalho necessário para o seu desenvolvimento. Assim, a partir do projecto inicial elaborado por José Carlos Loureiro, o trabalho a desenvolver para os vários edifícios que compõem este conjunto residencial será distribuído pelos principais arquitectos que trabalham no gabinete. Todas as propostas elaboradas por estes arquitectos são coordenadas por José Carlos Loureiro que não só define os critérios que as congregam entre si, como também realiza diversas alterações às mesmas no mesmo sentido, cabendo-lhe, por exemplo, a definição dos modelos das janelas verticais e das fachadas azulejadas. 

Esta solução de trabalho evolui ao longo da década de 1960 no sentido de uma maior liberdade projectual dos vários arquitectos, aproximando-se do sistema empresarial observado, por exemplo, no gabinete técnico da Hidroeléctrica do Douro, no qual Rogério Ramos, Manuel Nunes de Almeida e João Archer de Carvalho desenvolviam separadamente os vários projectos, mas trabalhavam colectivamente, colaborando mutuamente na sua elaboração. 

Serão vários os projectos elaborados segundo este sistema, sobretudo na década de 1960. É neste contexto que Noémia Coutinho fica encarregada da elaboração do projecto para o Conservatório Regional de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova de CODA em 1966. 

Enquanto edifício institucional, cultural e de ensino, o Conservatório de Aveiro assume um programa complexo que implica necessários cuidados no domínio da escala, da volumetria, da expressão urbana, entre outros. Como forma de resolução destas condicionantes, o programa é disposto num conjunto de volumes fragmentados que se organizam em torno de um pátio rectangular, de um claustro e de um anfiteatro ao ar livre. Esta solução arquitectónica deve muito às novas correntes arquitectónicas então em voga na Europa e em Portugal, as quais propunham uma nova perpectiva sobre a arquitectura moderna na qual os valores da arquitectura tradicional assumem grande relevância. Em Portugal, esta nova perspectiva assumia corpo em obras de arquitectos como Nuno Teotónio Pereira, Victor Palla e Bento d’Almeida, Fernando Távora, João Andresen, Octávio Lixa Filgueiras e, naturalmente, José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Noémia Coutinho, pela sua proximidade a muitos destes arquitectos, expressa os valores dessa nova perspectiva arquitectónica no projecto do Conservatório de Aveiro, conciliando o betão aparente com materiais e com motivos da arquitectura tradicional. Como tal, a fragmentação volumétrica traduz-se num complexo jogo de coberturas em telha, numa fenestração dinâmica e em trabalhos de carpintaria mais ou menos complexos, elementos de projecto que participam no processo de articulação do grande anfiteatro com as restantes componentes do programa, de dimensão mais reduzida. 

Devido a esta anatomia geral, o edifício do Conservatório de Aveiro enquadra-se na sequência de outros projectos do gabinete Loureiro-Pádua, como a Casa Júlio Resende em Gondomar (1961), a Escola Primária da Glória em Aveiro (1964-67) ou a Estalagem Zende em Esposende (1965-72), mas também com outras coevas destas, tais como a Igreja do Sagrado Coração de Jesus em Lisboa, de Nuno Teotónio Pereira e Nuno Portas (1961-1970), e o Convento das Irmãs Franciscanas de Calais em Gondomar, de Fernando Távora (1961-71). 

Tal como outras obras do gabinete Loureiro-Pádua, o Conservatório de Aveiro reflecte preocupações comuns à produção arquitectónica deste escritório, situação que se reflecte em elementos como o caderno de encargos, o qual segue o modelo comum a trabalhos ali anteriormente executados, recebendo este projecto, tal como os restantes do gabinete, a chancela final de José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos. 

Noémia Coutinho prosseguirá a sua actividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua após a apresentação da sua prova de CODA. Participou em obras como as do Mercado de Barcelos, cujo pátio apresenta semelhanças várias para com o claustro do Conservatório de Aveiro, do edifício do Banco Nacional Ultramarino em Braga, do Banco Borges & Irmão na Rua Infante D. Henrique no Porto, ou do Hotel Solverde na Granja, sempre colaborando de perto com José Carlos Loureiro e Luís Pádua Ramos. 

Dedicou sempre especial atenção, por exemplo, ao uso da cor, à relação com as pré-existências e à integração dos novos edifícios na cidade, num contexto de época marcado pela rápida volatilização da arquitectura corrente de matriz oitocentista. 

Noémia Coutinho foi sem dúvida uma arquitecta de destaque na sua época com um percurso diferenciado e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração. A singularidade do seu percurso enquanto uma das primeiras mulheres licenciadas em Arquitectura, assim como os seus contributos no ensino da Arquitectura, permitem reconhecer hoje, a par com a sua obra construída, a importância do seu trabalho. Um percurso que deverá ser valorizado e reconhecido enquanto um importante e significativo legado na história da Arquitectura em Portugal. 

https://www.anteprojectos.com.pt/2023/02/23/noemia-coutinho-ser-arquitecta-nos-anos-60/

Texto escrito por : Pedro Novo e José Pedro Tenreiro

22/02/23

Noémia Coutinho e as mulheres na arquitectura

 


Observador

Historicamente a indústria da arquitectura é predominantemente dominada por homens, encontrando as mulheres reconhecidas dificuldades no seu quotidiano laboral, conflitos de discriminação de género e o seu “esquecimento” em posições de liderança. Num universo de vinte e sete mil arquitectos, cerca de 43% são mulheres, contudo a visibilidade nos meios de comunicação, entre colegas de profissão ou em universidades continua a ser eminentemente masculina, assim como a cultura de atelier continuadamente classista.

Apesar de relevância e proeminência no contexto nacional, onde figuras como Olga Quintanilha, Helena Roseta, Maria Manuel Godinho de Almeida, Gabriela Tomé, Luísa Pacheco Marques, Maria Soledade de Sousa, Ana Vaz Milheiro, Patrícia Santos Pedrosa, Ana Tostões, Inês Lobo, Filipa Roseta, Patrícia Barbas, Mercês Vieira, Helena Vieira, Ana Jara, Andreia Garcia ou Luísa Bebiano, entre muitas outras, têm desenvolvido nas mais diversas áreas de intervenção enquanto arquitetas, não poderão ser ignoradas e a sua singularidade negligenciada pela história.


Maria Noémia Coutinho (1937-2017) foi sem dúvida uma arquiteta de mão cheia, com um percurso diferenciado para a sua época e disruptivo dentro dos costumes conservadores da sua geração, que viam na pintura e mais tarde no ensino do desenho, o caminho nas Belas Artes fora dos preceitos de uma profissão profundamente masculina. Ingressa no curso de Arquitectura do Porto, em 1955, e inicia o ofício com Viana de Lima e mais tarde no atelier de José Carlos Loureiro e Pádua Ramos. Neste último, fica encarregada da elaboração do projeto para uma “Escola de Iniciação de Arte”, atual Conservatório de Música Calouste Gulbenkian em Aveiro, o qual apresentará como prova final de curso em 1966. Noémia Coutinho prosseguirá a sua atividade dentro do gabinete Loureiro-Pádua, colaborando em obras como o Mercado de Barcelos, Banco Nacional Ultramarino em Braga, Banco Borges & Irmão no Porto, ou o Hotel Solverde na Granja, revelando através do conjunto um percurso sólido e pejado de qualidade tal como demonstrara na escola de Aveiro.


Noémia Coutinho, tal como tantas outras mulheres com distintos e valorosos percursos no ofício da arquitetura, merecem ser lembradas e reconhecidas enquanto insignes mulheres que necessitam de lutar em dobro num “mundo” ainda sem equidade de género. A sensibilização e a promoção da diversidade de género na Arquitetura são catalisadores de inovação e oportunidade profissional. Tal como Patrícia Santos Pedrosa alega, a defesa da mulher não pode ou deve ocorrer enquanto “mulher arquitecta”, mas sim numa esfera universal de “mulher na Arquitetura”, onde a valorização das várias práticas implicadas no fazer arquitectura, cidade e território são primordiais. É urgente e necessário o desenvolvimento de processos de reflexão e ação no âmbito da equidade de género e neste campo o trabalho que a Associação Mulheres na Arquitectura tem desenvolvido nos últimos tempos tem sido muito frutuoso.


A Maria Noémia Coutinho não poderá ser apenas um exemplo inspirador para tantas outras mulheres arquitetas – nós, arquitetos e arquitetas, teremos de ser também Noémias da promoção da equidade de género!


https://observador.pt/opiniao/noemia-coutinho-e-as-mulheres-na-arquitetura/

Lisboa Submersa




Diário de Notícias

Em ano de centenário do nascimento do arquiteto Victor Palla, que bom é recordar Lisboa retratada em Lisboa, Cidade Triste e Alegre. Nesse poema gráfico, editado na década de 50 do Séc. XX pelos arquitetos Victor Palla e Manuel Costa Martins, relata-se uma Lisboa debruçada sobre o Tejo, de uma topografia moldada pela força das águas e de gentes umbilicalmente ligadas ao horizonte atlântico.


Muitos anos passaram e a "nossa" Lisboa é outra, mais do que nunca, carece de ser mais participada cívica e politicamente na sua transformação. A definição do novo "desenho" do Aeroporto e a sua localização numa perspetiva macro de cidade, o "redesenho" das ciclovias da Almirante Reis e a consolidação do Martim Moniz, a solução para os frequentes problemas de mobilidade urbana e agora o flagelo das recorrentes inundações que colocam em causa a qualidade do planeamento urbano das últimas décadas, são hoje complexidades que as atuais "velocidades contemporâneas" não podem justificar.


Face a estes problemas de escalas diferenciadas, a resposta terá de ocorrer consubstanciada em soluções mais sistémicas no desenho da cidade, no espaço público e no edificado. A área metropolitana de Lisboa tem que mobilizar a sua enorme comunidade que pensa o espaço urbano, onde em particular arquitetos, paisagistas e urbanistas deverão ser chamados de forma responsável a colocar o seu saber e competências em conjunto com os outros intervenientes em prol no desenho do território.


A propósito das cheias de 1967 na cidade de Lisboa, Gonçalo Ribeiro Teles afirmava que "a Cidade e o Campo são construções do homem! Construção sábia é quando em benefício da comunidade ou profundamente negativa quando em benefício de alguns..." e é aqui que reside a chave do processo. A tecnocracia deverá imperar não fundando a resolução através do milagre do agora. É no planeamento estruturado, alicerçado em conhecimentos técnicos e apoiado por vontades políticas que o beneficio se repercutirá em favor da comunidade. Na certeza de que das grandes obras ao impasse inseguro, nesses investimentos, distam poucos centímetros políticos.


As recentes inundações em Lisboa vieram mostrar, mais uma vez, que a população terá que se adaptar aos novos tempos ditados pelas alterações climáticas. A cidade funcionará amiúde em situação de fenómenos extremos, pelo que a resposta imediata tem que se estruturar em soluções flexíveis e humanamente exequíveis, permitindo que agora, arquitetos e engenheiros, finalmente assumam um papel preponderante na qualidade de vida das cidades, cabendo por fim aos políticos delinear esforços para que estes possam executar o planeado.

Acordámos sobre uma Lisboa Submersa de incertezas, tal como a Manhã de Virgílio Ferreira.


https://www.dn.pt/opiniao/lisboa-submersa-15491993.html

13/09/22

Hugo Landeiro Domingues

 




Hugo Landeiro Domingues, fundanense de gema com raízes à Aldeia das Aranhas, terra de seus pais. Em menino brincou e construiu a sua personalidade pelas ruas do Fundão, junto de outros “artistas” que conheceu no seu percurso pelo agrupamento de artes da Escola Secundária do Fundão. É talvez nesta época que Hugo Domingues aguça a sua paixão pelas terras da Beira e em particular pela Serra da Gardunha.

Atingida a maioridade ingressou na Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, onde se licenciou em Design de Comunicação e onde regressaria, anos mais tarde, para frequentar o mestrado em Design de Comunicação e Novos Media. Era também pós-graduado em Comunicação e Imagem pelo IADE e em Marketing de Eventos e Produtos Turísticos pela Universidade da Beira Interior.

Foi também professor convidado na Escola Superior de Artes Aplicadas do Instituto Politécnico de Castelo Branco, no curso de Design de Comunicação e Produção Audiovisual, onde era conhecido pela exigência e rigor, pelo questionamento e entusiasmo que tentava transmitir às gerações mais novas, nas várias disciplinas que leccionava.

Enquanto designer de comunicação, iniciou o seu percurso pela capital, assumindo a direcção criativa de várias agências de design de comunicação e publicidade onde teve oportunidade de trabalhar para clientes como a EDP, FNAC, GALP, PT COMUNICAÇÕES, Agência LUSA, Tranquilidade ou Singer, entre muitas outras multinacionais.

Com espírito empreendedor e paixão pelo seu trabalho, sempre acreditou que conseguiria responder aos desafios colocados, independentemente da dimensão dos clientes. Ao fundar a sua primeira empresa, dividia o tempo entre o Litoral e o Interior, colocando o design ao serviço do desenvolvimento e da criação de valor territorial. Contribuiu para a atual identidade territorial da cidade, fazendo nascer reconhecidas marcas como a Cereja do Fundão, o Encontro do Vento ou o aclamado Festival dos Caminhos da Transumância, mais conhecido por “os Chocalhos”.

Realizou ainda consultoria em projectos de inovação, marketing, branding, design e identidade territorial e implementou produtos locais de onde se destacam em particular marcas como a “iNature” de promoção de turismo sustentável em áreas classificadas, a “Grande Rota da Transumância” e as “Rotas da Gardunha”.

A sua paixão pela tipografia permitiu-lhe criar diversas fontes tipográficas, que podem ser encontradas nas mais diversas publicações ou identidades, como é o caso da Casa da Cereja ou da renovação da identidade do Jornal do Fundão. Foi criador, coordenador e editor de diversas publicações locais e regionais, como a revista Solstício e o Almanaque Ocaia de matriz regional e que versam sobretudo as temáticas da natureza e da região da Beira interior. Em parceria com outros agentes locais, foi também ele criador, dinamizador e colaborador em eventos culturais como o TeatroAgosto ou o Solstício - Festival da Natureza.

Parceria, foi um termo que sempre fez parte do seu léxico e assim se entende que tenha sido membro activo de diversas associações de dinamização e desenvolvimento territorial, cultural e turístico de Beira Interior.

O seu portfólio é infindável e quase impossível de enumerar.

Nenhum obstáculo da sua vida o fez parar. Com a generosidade que lhe era característica, partilhava ideias com todos e plantava criatividade em vários pontinhos da Beira Interior. Com irreverência e astúcia, arriscava. Era perfeccionista e todos os seus trabalhos revelam-se num encontro entre um conhecedor exímio da região e um designer genial.

O Hugo nunca disse não a mais um desafio! Homem de pensamento ousado para os seus pares e repleto de uma identidade universal, com um profundo conhecimento das coordenadas identitárias do interior.

O Hugo merece ser recordado pela sua vida de partilha, pelo legado que deixou à cidade, às suas gentes e sobretudo a este território que tanto amou. 

08/07/22

A "barreira Invisível" - Notas sobre um dispositivio cénico

 






As questões em torno do “limite” sempre me intrigaram aquando da análise das relações humanas no quotidiano urbano. Perante o desafio de reflectir sobre uma ou a “Avenida” e seu contexto, em particular na polis do Fundão, duas questões surgiram de modo vincado: a velha máxima do arquitecto Nuno Garcia – “Fundão, a cidade de risco ao meio” e qual o entendimento sobre a definição de um eixo viário que ao longo dos tempos se tornara numa extensa Ágora dos tempos modernos. É na base desta mutação de certa forma tentacular entre dois conceitos avenida/ágora que a expansão da democratização do espaço, em particular neste lugar do Fundão, não ocorre tradicionalmente, apenas e só nos limites de uma Praça. Desde a década de 60 do século passado que este eixo é o motor de transformação, onde o espaço-tempo se reflecte no exercício da vida quotidiana sobre “layers” muito bem explanados nas “Velocidades Contemporâneas” de Alexandre Melo.  

“Cercar uma horta ou um jardim é comum; não, cercar um império.” Diria Jorge Luís Borges aquando dos relatos de sinólogos sobre a decisão singular de Qin Shi Huang de erigir a grande muralha da China. A “barreira invisível” é um fenómeno que o inconsciente produz segundo o nosso background social e que Edward T Hall constrói no conceito de  “dimensão oculta”. A dimensão oculta, no seu entendimento é definida pelo espaço que “trabalha “ num constant exerccio de aproximação, de afastamento e que sobretudo possibilidta os nossos afectos e relações humanas sem que conscientemente entendamos essas evidências. Para Edward T Hall que categoriza determinadas reacções particulares entre pessoas  e o espaço, enquanto dimensões ocultas inconscientes. Nessa medida baliza o conceito em quarto dimensões de partilha do espaço: íntima, pessoal, social e pública.

Perante os layers das “velocidades contemporâneas”  de Alexandre Melo e a as relações sociais da “dimensão culta” de Edward T Hall reconheço que uma fotografia do arquivo do Jornal do Fundão sobre um dos passeios da Avenida da Liberdade na cidade do Fundão agregava com rigor as velocidades e relações que ocorrem na longa ágora da cidade.


Os layers são aparentemente visíveis no reconhecimento das diferente velocidades de apropriação do eixo viário pelos automóveis e do passeio pelos transeuntes. A problemática estava em cima da mesa e a formula de como compactar todos estes cenários num contexto plano de uma só dimensão, era o desafio. O eixo palco-publico é virtuoso mas limitador, contudo a premissa era desafiadora.

Assim arrancámos para o desenho de uma estrutura que servisse de barreira. Um limite que construísse a fronteira entre o social e o privado mas que potenciasse outras dimensões. Que permitisse viajar tal como Lewis Carroll  lançou Alice para “o outro lado do espelho”.

De um modo minimalista foi criada uma estrutura de madeira constituída por diferentes módulos de se acoplam de modo orgânico mas com ordem certa. Todos os módulos são diferenciados e constituídos de uma segunda estrutura no seu interior que permite a colocação de adereços de figurismo dos actores. O volume dos adereços provoca consequentemente uma “espessura”, uma densidade, que se transforma numa membrana atravessável e não reconhecida pelo público. É este processo de atravessamento que permite a definição das viagens tempo e espaço. A personagem poderá navegar temporalmente entre anos ou décadas para o mesmo espaço ou para outro local qualquer com intimidade diferenciada do anterior. Por outro lado a encenação acabou por descobrir a potencialidade do processo introduzindo a mutação dos actores em diferentes personagens aquando dos atravessamentos. Perante este exercício, a lógica estava ganha, contudo a “Avenida” tinha muitos layers. e para os materializar a estrutura “fonteira” tinha de poder rodar, recuar e avançar por forma a estrangular ou libertar a dimensão entre actores e publico.  

A Amália, como carinhosamente o encenador a denominou, tornou-se também num personagem com riqueza simbólica e profundamente estruturante no contexto da peça. Mais tarde percebi que o nome do dispositivo cénico não era um acaso. Era também uma dimensão oculta, um fado cantado de uma história de uma cidade... das cidades!











01/07/22

Norte Júnior, do Rossio ao Chiado





 No panorama da arquitectura lisboeta do início do século XX destacam-se os nomes de vários arquitectos que assumem um papel de relevo a nível nacional, ditando os caminhos da evolução e renovação constante de modelos ornamentais, de modos de edificação e de sistemas construtivos. Uma destas figuras de relevo é Manuel Joaquim Norte Júnior, arquitecto que inicia a sua actividade nos primeiros anos de Novecentos e que, sendo desde cedo galardoado em diversas edições do Prémio Valmor, se torna um dos principais arquitectos de Lisboa na segunda e na terceira décadas do século.

Norte Júnior, como é designado abreviadamente desde então, nasce na véspera de Natal de 1878 em Lisboa, sendo filho de um artífice do mundo da construção, designadamente um carpinteiro de origem algarvia, situação comum a muitos outros arquitectos do seu tempo. Após completar o seu curso de arquitetura em Lisboa, prossegue os seus estudos enquanto pensionista do Estado em Paris. Após o seu regresso a Lisboa, a sua primeira obra de destaque é a Casa-atelier do reputado pintor José Malhoa, situada numa esquina da Avenida 5 de Outubro, a qual projecta em 1904 e pela qual recebe o Prémio Valmor do ano seguinte. Entre as suas obras mais conhecidas no domínio residencial urbano estão o Palacete de José Maria Marques situado na Avenida Fontes Pereira de Melo, conhecido por albergar a sede do Metropolitano de Lisboa, obra que projecta em 1911 e pela qual recebe o Prémio Valmor de 1914, bem como os grandes e inovadores edifícios mandados erguer pelo Visconde de Salreu na Avenida da Liberdade entre os números 206 e 208, igualmente com frente para a Rua Rodrigues Sampaio, projectados a partir de 1912 e galardoados com o Prémio Valmor de 1915, além do edifício da esquina da Rua Braamcamp com a Rua Castilho projectado em 1921. A estes podemos ainda somar a sede de “A Voz do Operário”, projectada em 1912 para um local de destaque junto da Igreja de S. Vicente de Fora, ou os Armazéns Abel Pereira da Fonseca, projectados em 1917 para o Poço do Bispo. Para além dos limites da capital destacam-se vários projectos que realiza para a Costa do Sol e, sobretudo, o Palace Hotel das termas da Curia e o edifício da Sociedade Amor-Pátria na cidade açoreana da Horta.

Sendo no princípio do século XX, a zona da Baixa Pombalina e do Chiado, o território de maior destaque urbano em Lisboa no domínio comercial, também ali Norte Júnior deixará a sua marca em diversas obras de referência e de transformação urbana, assumindo frequentemente posições de grande destaque e visibilidade nas principais artérias e espaços, tais como a Rua Garrett, a Rua do Carmo, o Rossio e a Rua Augusta.

A primeira obra de grande destaque projectada por Norte Júnior neste território de matriz pombalina corresponde ao Café Chave d'Ouro, encomendado por Joaquim Albuquerque em 1915 para a frente poente do Rossio. A intervenção realizada por Norte Júnior, durou apenas até meados da década de 1930, quando uma remodelação e ampliação do Café Chave d’Ouro ditou o total desaparecimento dos elementos datados de 1915-1916. O projecto era caracterizado sobretudo pela sua representação exterior, de grande exuberância formal. A fachada sóbria setecentista é rasgada no piso térreo e primeiro andar por um vistoso frontispício ricamente ornado escultoricamente. Este frontispício assume uma composição assimétrica, com um tramo de vão único do seu lado esquerdo, relativo a uma tabacaria, e um tramo mais largo do seu lado direito, correspondente à entrada no café. É este ultimo que assume maior destaque, com uma composição tripartida no piso térreo, onde a porta em posição central surge flanqueada por duas colunas estilizadas em mármore, e um janelão único no piso superior, sendo todos os vãos caracterizados pelos seus remates superiores em arco abatido. Sobre a porta central, interrompendo a cornija curva com volutas, emerge uma figura humana alada segurando uma lanterna sobre uma faixa com a designação do café. Lateralmente, rematando as ombreiras do vão tripartido, surgem dois mascarões e, superiormente a estes, duas luminárias. Rematando superiormente toda a composição é disposto um medalhão com a data de 1916. Apesar da curta existência desta obra, alguns dos seus elementos serão retomados em projectos seguintes de Norte Júnior para este território.

O Edifício do Crédito Predial Português, erguido em plena Rua Augusta, constitui a maior obra de Norte Júnior neste território. Por este motivo, este edifício destaca-se das dominantes edificações de origem pombalina pela sua fachada marcadamente ecléctica com elementos clássicos estilizados de um modo geométrico, indiciando já em 1919 as vindouras influências Art Déco observáveis com maior clareza num desenho proposto para os portões térreos, que não chega a ser executado. Ressurgem aqui as colunas como elemento marcante da entrada principal, feita agora por três altas portas localizadas num tramo central, mais largo, flanqueado por outros dois tramos mais estreitos, separados daquele por duas altas pilastras estilizadas. Os interiores, inteiramente alterados na década de 1970, eram um reflexo da tripartição do alçado principal, sendo que os postais de entrada permitiam aceder a um amplo átrio de múltiplo pé-direito, num espaço de planta quadrangular com os pilares de gosto geometrizante nos ângulos contrastando com o pavimento em mármore com desenho clássico ainda hoje existente.

A mais conhecida obra realizada por Norte Júnior na zona do Chiado corresponde à remodelação e ampliação do espaço ocupado pela firma Teles e C.ª, o celebrado Café "A Brasileira", realizada em 1922. Fora em 1905 que se instalara aqui o estabelecimento de venda de cafés da firma Teles e C.ª, num espaço anteriormente ocupado por uma camisaria. Com o sucesso do negócio e a necessidade de introdução de novas valências, o espaço passa a funcionar igualmente como café em 1908. Catorze anos volvidos, Norte Júnior é chamado para projectar as obras de ampliação do espaço incluindo a sua ostentosa ornamentação interior. O edifício residencial de matriz pombalina apresentava já nos primeiros anos de Novecentos o seu piso térreo transformado pela introdução de devantures em ferro fundido, uma das quais correspondente ao espaço comercial da firma Teles e C.ª. Esta devanture, de três vãos, é agora substituída por um frontispício de elaborado desenho ecléctico na qual se repete a estrutura inicial tripartida em ferro fundido, agora com uma nova ornamentação e enquadrada por um arco de volta inteira e por duas esculturas situadas nos extremos laterais, projectando-se sobre o passeio apelando à entrada no interior do café, numa conjugação da arquitectura e da escultura ornamental que suplanta o modelo já expresso anos antes no Café Chave d’Ouro. O espaço interno, uma sala estreita e comprida, é marcado pelo seu pavimento em mármore preto e branco, pelas duplas pilastras de mármore preto e capitéis dourados ritmando as paredes laterais, pelos seus lambrins de madeira, pelos seus espelhos e pelos seus estuques, acrescentando-se a estes a elaborada parede de fundo com frontões enquadrando um relógio central. O balcão do café ocupa o lado à direita, transpondo para a planta do espaço comercial a tripartição da fachada. O café será o epicentro de um importante círculo artístico e cultural da capital, sendo por este motivo que logo entre 1922 e 1923 vários dos artistas que o frequentam realizam um conjunto de pinturas em tela, dentro das correntes artísticas mais vanguardistas, sendo aquelas expostas nas paredes do café. Entre os seus autores estão Jorge Barradas, Eduardo Viana, Almada Negreiros e Stuart Carvalhais. As pinturas originais são vendidas em 1969, mas em 1971 outras telas de artistas contemporâneos, como Carlos Calvet, Eduardo Nery e Nikias Skapinakis, vêm ocupar o espaço das anteriores. O agora celebrado Café "A Brasileira" acaba por se tornar num dos cafés mais concorridos de Lisboa também pela sua relevância enquanto espaço de comunhão e participação da comunidade intelectual e artística da cidade. Escritores e artistas de renome como Almada Negreiros ou Fernando Pessoa encontraram ali um lugar de debate e inspiração para gerações futuras. De relevar que os actuais proprietários ainda hoje promovem esta singularidade permitindo o contacto do visitante com objectos pessoais de Fernando Pessoa dignamente ali expostos.

A assiduidade de Fernando Pessoa motivou a inauguração, nos anos 1980, da estátua em bronze da autoria de Lagoa Henriques, que representa o escritor sentado à mesa na esplanada do café. Com toda a importância que teve na vida cultural do país, mantém hoje intacta a sua identidade, quer pela especificidade da sua decoração, quer pela simbologia que representa por se encontrar ligada a círculos de intelectuais.

Em 1925 Norte Júnior volta a conceber um projecto de relevo para a zona do Chiado, desta vez para a Rua do Carmo, designadamente o estabelecimento comercial da Joalharia do Carmo, detido então por Raul Pereira e adquirido posteriormente pelo ourives portuense Alfredo Pinto da Cunha. Este espaço ocupa os espaços inferiores da chamada "muralha do Carmo", um alto muro de suporte das estruturas do antigo convento arruinado pelo terramoto de 1755. A muralha fora nobilitada e reconstruída em 1911-1912 segundo um projecto da autoria do arquitecto Leonel Gaia que passou pela introdução de arcos e de pilastras amplamente espaçadas. Os espaços térreos de uso comercial são ocupados em 1925 pela Luvaria Ulisses, a sul, seguindo-se a Joalharia do Carmo. É esta última que é projectada por Norte Júnior, ocupando o espaço correspondente a um arco abatido cujo vão é tratado de forma semelhante ao do frontispício de "A Brasileira", com uma ornamentação ecléctica em ferro fundido. O pequeno espaço interior é caracterizado por um primeiro compartimento de planta rectangular ao qual se sucede um outro, disposto por expansão do canto esquerdo do primeiro, de planta arredondada, onde se inclui uma escadaria de acesso à sobre-loja. Por oposição aos elementos de ferro da fachada, no interior a ornamentação assume uma clara influência Art Déco presente em lambrins, vitrinas e no próprio guarda-corpos da escadaria. Apesar dos seus cerca de 100 anos de existência, o espaço comercial mantém a sua actividade de joalharia, mas agora em exclusivo sobre o trabalho minucioso do ouro na arte da filigrana, em sintonia com os preceitos de rigor introduzidos no desenho da concepção da fachada.

No ano seguinte Norte Júnior realiza uma nova intervenção de relevo no contexto dos edifícios de matriz pombalina, desta vez retornando à Rua Garrett. No edifício da esquina defronte de "A Brasileira" estava instalado desde 188 um estabelecimento comercial fundado pelos irmãos António e Ramiro Leão. Em 1926 um incêndio destrói parcialmente o edifício e este estabelecimento comercial, conduzindo à necessidade de ali realizar uma profunda renovação. Neste contexto, a intervenção de Norte Júnior passa simultaneamente pelo interior da loja bem como pela modernização das fachadas. No primeiro caso, destaca-se a introdução de vários elementos de destaque. Um deles é uma das duas escadarias, a qual apresenta pinturas murais concebidas pelo pintor João Vaz (1859-1931) representando o Palácio de Queluz, a Boca do Inferno, a Torre de Belém, o Mosteiro dos Jerónimos e a Basílica da Estrela, juntando-se a estas um vitral com motivos vegetalistas e animais. Outros são o emblemático ascensor que, tal como os restantes espaços do interior do estabelecimento, é ornado numa estilização Luís XVI, enquanto que nos tectos surgem três pinturas a óleo elaboradas por alunos da escola Afonso Domingues com base em desenhos de João Vaz. No exterior a intervenção de Norte Júnior destaca-se sobretudo pela introdução de um torreão em balanço sobre as fachadas no próprio cunhal, atribuindo-lhe um maior destaque urbano ao torná-lo uma charneira entre a Praça Luís de Camões e o eixo comercial do Chiado.

Em 1929 Norte Júnior realiza uma nova intervenção para o quarteirão do Café Chave d’Ouro, elaborando o projecto para a renovação das instalações do centenário Café Nicola, o qual fora adquirido igualmente por Joaquim Albuquerque. Esta nova intervenção vem em linha com os pressupostos já observados nas fachadas dos cafés Chave d’Ouro e de "A Brasileira", bem como da Joalharia do Carmo, com a tripartição da fachada, o recurso a elementos escultóricos de relevo e a aplicação de luminárias lateralmente, assinalando exteriormente o café. Os elementos verticais que estabelecem a tripartição do grande vão são novamente constituídos por duas colunas em mármore, à imagem do café projectado por Norte Júnior para o mesmo quarteirão em 1915. Estas colunas, que aqui assumem uma clássica ornamentação de ordem jónica, suportam agora uma verga curva rematada lateralmente por exuberantes volutas, as quais enquadram a designação do café. O projecto de Norte Júnior terá igualmente abrangido o mobiliário e utensílios utilizados no interior. No entanto, desta intervenção resta hoje apenas o frontispício de desenho ecléctico, uma vez que o espaço interior foi somente seis anos depois alterado profundamente seguindo um projecto do arquitecto Raul Tojal, o qual ali empregou uma ornamentação de um gosto Art Déco tardio que certamente difere da inicialmente proposta por Norte Júnior.

Nas décadas seguintes Norte Júnior realizará novos projectos para o território lisboeta da Baixa e do Chiado, como é o caso da remodelação do já desaparecido estabelecimento comercial Américo Lima na Rua Augusta e de um edifício na mesma artéria, entre outros. No entanto, as obras realizadas na década de 1920 ainda existentes são aquelas que assumiram maior destaque urbano e aquelas que revelaram um maior contributo para a modernização arquitectónica do núcleo comercial da capital, mantendo-se como símbolos vivos da dinâmica cultural e artística ali dominante durante várias décadas do século XX, nomeadamente o Café "A Brasileira" e a Joalharia do Carmo, duas obras ainda hoje preservadas na sua integralidade.

https://www.anteprojectos.com.pt/2022/05/27/case-study-norte-junior-do-rossio-ao-chiado/

Texto em co-autoria com José Pedro Tenreiro
Jornal Anteprojectors nº332
Maio 2022

30/04/20

Ordem em Transição


 

Em Setembro do ano passado penso ter sido assertivo quando escrevi que a aprovação do Regulamento de Organização e Funcionamento das Estruturas Regionais e Locais da Ordem dos Arquitectos (ROFERLOA) constituir-se-ia na maior transformação orgânica e funcional na Ordem dos Arquitectos desde que a mesma em 1998, deixou de ser Associação dos Arquitectos Portugueses! As transformações assumidas, numa oportunidade conjuntural e por maioria relativa em plenário de Delegados da Ordem dos Arquitectos, permitiram que entremos em período eleitoral, na perspectiva de sete novas secções regionais.

Percebendo a importância do que estava em causa, o Presidente da Assembleia de Delegados, e bem, abriu as assembleias à participação de todos os associados. Abertura que procurava colher junto dos associados, ora privados destes espaços deliberativos, uma leitura transversal e consultiva. Apesar de em Setembro passado eu apelar para que “apesar de o voto ser a nossa maior arma na definição dos caminhos futuros que pretendemos para esta Ordem, não podemos desprezar esta oportunidade”, a participação em assembleias e sessões de esclarecimentos foi residual a Norte e quase nula a Sul. Não havia razões para tremendo desinteresse. A Ordem estava em mudança e merecia uma participação objectiva, informada e mais que tudo, responsável.

As novas secções espalhadas pelo país terão agora de se constituir com corpo executivo, respectivos concelhos de disciplina e mesas de assembleia. A multiplicação de pessoas na estrutura executiva da Ordem não poderá ser desculpa para falta de representatividade no território, mas será factor decisivo na resposta qualitativa, principalmente nos primeiros momentos de mandato. Espera-se que esta transformação permita regulamentar transformações significativas nas estruturas de representação local que permitirão desenvolver o aceleramento da tão desejada equidade entre os associados residentes nos dois grandes centros urbanos e o resto do país.

Uma Ordem que aparentemente sairá musculada e capaz de dar resposta às necessidades dos seus associados, num extenso processo de desfragmentação e povoação de territórios carentes de apoio e proximidade, viverá no período pós-eleições a sua maior dificuldade na restruturação organizacional.

Perante um passo de gigante no escuro, será a ausência de certezas no que concerne à saúde financeira, após esta mutação orgânica, a corda que permitirá à Ordem maniatar-se a si mesma? Na certeza de quem poderá desvendar e resolver este problema serão os novos eleitos, não nos resta outra solução que não seja votarVotar de modo massivo mas sobretudo consciente de que o caminho, mais do que nunca, não será fácil para quem nos vier a liderar!


Jornal Construir nº411 
Abril 2020