Sabiamente Le Corbusier em 1923 definiu no seu livro “vers une
architecture” a arquitectura enquanto “le jeu, savant, correct et magnifique
des volumes sous la lumière.” Se existe alguém que tenha percebido o verdadeiro
sentido desta frase e explorando-o na sua plenitude, é sem dúvida Alvaro Siza
Vieira. A percepção da envolvente e o trabalho com os pontos cardeais são
primordiais na desenvoltura da sua metodologia projectual! Perante a
problemática do lugar, a luz, não é o fim na construção das espacialidades
interiores, na media em que o jogo das sombras exteriores é mecanismo de
hierarquização quando o edifício se debruça sobre o território. Desde as suas
primeiras obras se observa uma capacidade aditiva onde o domínio do pormenor
impera, não é na soma das partes que se lê o conjunto no pressuposto que a
complexidade da sua obra se enjeita para além do poder criativo, no
desenvolvimento da relação formal-espacial. As formas, os espaços, os detalhes
e a luz vivem e sobrevivem, na duplicidade do confronto e da adição, numa
autonomia harmoniosa e sem complexos. Aqui se eleva a diferença do seu
estatuto, Siza, tal como Reyner Banham refere em “Le brutalisme en
Architecture” determina a luz natural para uma espacialidade expressa numa
imagem arquitectónica sem semelhante, proporcionando um habitar para um lugar
neste tempo preciso. Fernando Távora chega a afirmar em 1947 que “tudo há que
refazer, começando pelo princípio”, entendendo que se deveria olhar para o
passado e para a arquitectura genuinamente portuguesa desenvolvida pelas mãos
da tradição e do saber falado. Perante este estreito dilema, jovens arquitectos
à época desenvolvem um caminho sustentado em um novo vocabulário que sintetiza
as necessidades habitacionais de época e traduzem uma humana Portugalidade na
multiplicidade das suas relações. Apesar deste registo, a obra de Siza permite
a desenvoltura de uma complexidade alicerçada num percurso imprevisível que
permite que cada obra seja autónoma apesar de ser mais uma peça numa obra
continua e sem interrupções. A continuidade detectada é garantida por uma
postura e por um não formalismo que transforma o real em objecto de projecto,
conduzindo a proposta à essência primeira do lugar. A luz persiste, mas agora
sobre volumetrias que constroem a paisagem através de “um trabalho modesto,
cauteloso”. Tal como Siza afirma relativamente à tradição, ele mesmo se
transporta de baixo da luz por entre “conflitos, compromissos, mestiçagem e
transformação.”
11/12/13
Nadir Afonso - da intuição artística ao raciocinínio estético
@ nadir afonso
Arquitecto e pintor, no mundo
Nadir em
todos os sentidos assume-se a excepção à regra, onde como ele, são poucos os
exemplos no panorama artístico português que tenham conseguido produzir tão profunda
criação teórica aliada a uma profícua e almejada prática de atelier. A
totalidade da sua obra não reflecte academismo institucional ou identidades
reflexo de outros, a sua singularidade é verdade na sua intemporalidade
identitária. Perfil demonstrado com clareza nos escritos que desde sempre
retalhou no papel e fez questão de publicar. Talvez na sua obra escrita, se
encontre a totalidade da sua obra, onde o pensamento é explanado na palavra e
encerrado posteriormente na fluidez do traço. È nesta experiencia que Nadir se
sente comprometido na procura do primado do carácter fenomenológico. Onde a
geometria do universo e a sua cosmogonia são enceto para a justificação da sua
obra. Entendendo a via entre o homem e objecto, entidade própria, geradora da
alteração do “significado qualitativo dos objectos” para a “expressão
quantitativa dos espaços”. Assume por um lado que a redução fenomenológica
coloca em suspenso o conhecimento das coisas do mundo exterior a fim de
concentrar-se o individuo exclusivamente na experiência em foco, por outro lado
“o objecto existe sem o sujeito, mas não é dado sem a actividade do sujeito”. Arroga
assim em obras anteriores que esta relação é uma entidade em si, e aqui dá
lugar ao papel da intuição artística, onde acorda a geometria como alicerce no
entendimento da significância entre o mundo e a consciência. A imutabilidade e
eterna harmonia adquirem consciência no raciocínio estético, adquirindo a
geometria um papel orientador sendo legitimada por Pitágoras, a sua verdade. O
que procura na sua essência, são as qualidades da perfeição, aquando da sua
aproximação limite revela-se a harmonia. Se a geometria de Pitágoras alimentava
o encanto duradouro para a perfeição de Marx, Nadir defende o sentido da
harmonia alicerçado nas leis imutáveis da geometria. Aqui reside a essência da
obra de Nadir, numa depurada clarividência na expressão do pensamento
complementa uma obra artística, e agora, na densa espessura da escrita “da
intuição artística ao raciocínio estético”.
03/12/13
Livro: As Roças de São Tomé e Príncipe
As Roças de São Tomé e Príncipe, estudo
e investigação de Rodrigo Rebelo de Andrade e Duarte Pape, talvez seja neste
final de ano, a mais interessante novidade editorial nacional dentro da esfera
da arquitectura. O que mais surpreende nesta aposta da Tinta da China é a forma
como a investigação foi “manipulada”, se por um lado a editora não deixou de
transformar o estudo dos dois talentosos investigadores e arquitectos num valioso
instrumento de estudo para estudantes e arquitectos, por outro proporcionou ao
leitor um binóculo sobre o arquipélago para amantes de África e da história
colonial portuguesa. Perante esta publicação percebe-se que procura ocupar um
espaço que outras editoras especializadas, vão descurando e trabalhando com
pouca convicção e sentido. Em 2010 com “Moderno Tropical – Arquitectura em Angolae Moçambique, 1948-1975” de Ana Magalhães e Inês Gonçalves reconhecia-se um
atrevimento arriscado, confrontados com esta obra, somos a anuir determinação e escolha
acertada, iniciando um processo interno, de construção de uma “estante”
editorial que versa a arquitectura.
O trabalho apresentado por Rodrigo Rebelo de Andrade e Duarte Pape vem ao encontro de uma necessidade latente nas publicações
de investigação sobre arquitectura colonial, onde figuras como José Manuel Fernandes
em “Geração Africana”, de Livros Horizonte, “África - Arquitectura e Urbanismo de
Matriz Portuguesa” e “Arquitectura e Urbanismo na África” das edições Caleidoscópio;
Ana Vaz Milheiro em “Guiné-Bissau, 2011” da Circo de Ideias e “Os Trópicos sem
Le Corbusier” da Relógio D´Água; ou Miguel Santiago num registo mais
monográfico sobre “Pancho Guedes – Metamorfoses Espaciais” da Caleidoscópio, têm
vindo a promover, entre outros, a noção de que a arquitectura de raiz
portuguesa apesar de amplo e merecido estudo ainda é por nós, desconhecida. Esta
abordagem agora publicada assume uma rotura com o universo de publicações antes
produzido sobre a arquitectura luso-colonial africana, quase exclusivo ao
território Angolano e Moçambicano. Territórios como Cabo Verde, Guiné-Bissau e
São Tomé e Príncipe estão por descobrir apesar das incursões de Ana Vaz
Milheiro e Eduardo Costa Dias essencialmente sobre o séc. XX guineense e cabo-verdiano
e sobre o interessante e importante trabalho desenvolvido pelos gabinetes de
urbanização colonial entre 1944 e 1974.
Mais do que um inventário, tal como
assumem os autores no sexto capitulo, é fundamentalmente um enquadramento do
café no arquipélago e toda a orgânica tipológica e programática por detrás de
um contexto social gerado em torno desta cultura. As roças no seu edificado representam
uma época auspiciosa de um legado desenvolvido com diversidade formal e de escolha acertada dos materiais no desenvolvimento da construção. Para além dos 122
exemplos identificados, o enquadramento geográfico explanado permite uma
leitura num perfil historicista mais adequado às relações sociais e económicas ali
desenvolvidas. Perante um património pouco preservado e sem qualquer cuidado
governamental, mais à frente, os autores perspectivam o caminho a travar,
apostando fundamentalmente em processos de recuperação e preservação da riqueza
patrimonial encontrada.
Publicação de leitura fácil e de valor incomensurável
não só pela descoberta de tão “distante” e valioso património como pela
consubstanciação de um extraordinário legado fotográfico do jovem arquitecto e
fotografo Francisco Nogueira que permite ao leitor viajar sem comprar bilhete. Assumindo
a mesma perspectiva de José Manuel Fernandes no seu prefácio, esta obra
representa o estudo editado “mais aprofundado, inovador, esclarecido e
polifacetado” sobre o tema das roças em São Tomé e Príncipe. Para o leitor arquitecto
fica a faltar o registo técnico detalhado ou levantamento circunstancial ajustado
às suas expectativas, contudo a estrutura e beleza da obra que Tinta da China
nos presenteia, permite-nos a espera por mais um degrau na investigação, posteriormente com a coordenação
de José Manuel Fernandes neste belíssimo trabalho conjunto de três jovens
arquitectos da geração que agora emigra.
1.ª edição: Outubro de 2013
n.º de páginas: 240
isbn: 978‑989‑671‑175‑7
12/11/13
Supermodernos
O Movimento Moderno, força destemida com leme de betão foi domesticada pelo capital e lógicas financeiras após a Grande Guerra, dilui-se na estética e assumiu um papel de protagonista nas questões “mais sociais”. Já o chamado pós-modernismo através do contextualismo, adquire expressão que avança mais tarde para o descontrutivismo filosófico de Derrida, Deleuze e companheiros. Esta “evolução” da “condição” moderna é hoje assumida por muitos como uma era supermoderna, onde os lugares deram vez aos “não lugares” de Marc Áuge. Com a velocidade que as sociedades actuais imprimem nas suas dinâmicas internas, o “lugar” historicista e enraizado no contexto do pós-modernsmo transformou-se através da maior mobilidade, do bombardeamento de signos e informações e na produção de elevados níveis de anonimato nos espaços públicos. Deste modo os não lugares assumem-se como auto-redomas relativamente à localização, envolvente e por outro lado extremamente permeáveis aos diferentes usos e lógicas ligadas às redes de informação e interesses económicos dos quais, cada vez mais, são fatia importante. A actual percepção de lugar e uso do espaço é consideravelmente diferente do final do séc. XX pelo incremento do comércio mundial e do expansionismo que a “net” permitiu na disponibilidade e obtenção de informação.
Como Ibelings afirma, agora o “mundo tornou-se menor e, ao mesmo tempo, maior”, na exacta medida em que, por um lado, a facilidade na difusão da informação na “rede” tornou o mundo mais pequeno, por outro lado a actual possibilidade de comunicação e interacção de indivíduos que anteriormente pela distância espacial não lhes seria possível interagir, torna o mundo maior.
Perante os flashes da ribalta a actual arquitectura distancia-se da era pós-moderna através de vontades tecnocráticas que procuram uma resposta ao livre capital das cidades cosmopolitas e necessidades das empresas. Esta arquitectura que se coloca ao serviço da modernização, como parte do processo económico apresenta-se livre de qualquer justificação social de apoio ou assistência. O paradigma terá de mudar em resposta ao esvaziamento do conceito económico do continente europeu e americano e como solução para
estruturar o desenvolvimento dos países do continente africano e asiático.Moçambique e José Forjaz
O regime ditatorial foi determinante no percurso da sociedade portuguesa no principio do séc.XX, tendo uma forte presença na pedagogia da arquitectura durante este período. A politica da encomenda proporcionou obras de grande envergadura e emblemáticas para a época em alguns dos casos. No entanto o advento do modernismo, através dos CIAM e com algumas influencias modernistas brasileiras, proporcionou que ao pouco dinâmico imaginário formal imperial, um novo caminho através das novas gerações de 40. No caso concreto de Maputo, “Pancho Guedes” é a maior referencia e talvez a obra que marca de forma indelével a paisagem da cidade pela sua excentricidade relativamente ás convenções de época. Contudo depois da independência em 75, este ritmo esmorece e a qualidade arquitectónica da antiga Lourenço Marques abranda. As objectivas das publicações da especialidade deixam de estar viradas para África apesar de algumas personagens de relevo continuarem na sua senda de mérito. Um dos maiores exemplos é José Forjaz, com a pacificação do território, constitui uma obra interessante e consubstanciada na observação do território moçambicano (lugar e paisagem), nas lógicas construtivas vernaculares, nas orgânicas tipológicas e fundamentalmente nos valores do lugar e do grupo social onde está inserido.
José Forjaz nas duas ultimas
décadas produziu uma obra no território moçambicano talvez pouco revisitada e
analisada pela critica. Obra complexa que abrange os mais diversificados
programas e níveis de escala, nomeadamente edifícios residenciais, públicos,
religiosos, escolas ou monumentos. Com um percurso que pisa territórios
influenciados por Barragan ou Charles Correa contudo a formação portuguesa não
o inibe de beber do imaginário modernista brasileiro. Apresenta uma abordagem
ao lugar e programa proposto de uma extrema sensibilidade e reconhecimento da
envolvente quer na escolha dos materiais e sua conjugação, quer no controlo da
luz e condução da mesma na definição de hierarquias. A economia de recursos é
utilizada numa inversão exponencial à sua capacidade de produção de
complexidade espacial como são exemplos disso a Escola profissional dos
Salasianos de Matundo ou a Residência Torcato em Maputo.
O Mosteiro das Clarissas em
Namaacha, a residência João Pó e a
Astrid Fion em Maputo são três obras determinantes na definição do
perfil do arquitecto que produz uma obra que marcará de forma indelével o
território moçambicano. Com um profundo enraizamento na cultura moçambicana,
José Forjaz define actualmente um relevante caminho no panorama arquitectónico
africano, como diria Mia Couto, “é para isso que servem os caminhos, para nos
fazerem parentes do futuro”.
24/10/13
Bambadinca, Guiné-Bissau
Recentemente realizei uma viajem à Guiné-Bissau, mais propriamente à capital Bissau e a Bambadinca, onde acompanhei a construção de um projecto de arquitectura em co-autoria com o atelier do qual sou coordenador. O projecto na sua génese é uma central fotovoltaica híbrida que pretende fornecer energia eléctrica à totalidade da vila de Bambadinca com aproximadamente sete mil habitantes. Perante uma realidade da construção tão distante do panorama ocidental em todas as suas vertentes: clima, qualidade construtiva, qualificação da mão-de-obra e técnicos especializados, acesso aos materiais e tecnologias de apoio, só através de processos criativos se poderão propor soluções de controlo ambiental e das águas das chuvas que correspondam correctamente às exigências da região. Agora se entende, a quando da realização do documentário de Catarina Alves Costa “o arquitecto e a cidade velha”, que o arquitecto Álvaro Siza Vieira questione um dos habitantes locais, se seria necessária, após a remodelação da sua habitação, a colocação de vidros nas janelas! Esta observação não foi de todo descabida quando confrontado com a natureza das habitações a que se propunha recuperar e correspondente clima que se ajustava à Cidade Velha da ilha de Santiago em Cabo Verde. O clima africano a isso obriga e determinada que as soluções tenham de ser obrigatoriamente consentâneas com a realidade envolvente, não permitindo imposições de sistemas de climatização dispendiosos ou vulgarmente aplicados no continente europeu. A observação e análise da natureza das construções da região permitiu-nos desenvolver uma proposta que se adapta às condições climatéricas da zona e às exigentes especificações técnicas das baterias de apoio aos painéis solares. Nessa medida todo o edifício recorre a sistemas de ventilação passiva com soluções baseadas nas construções vernaculares das tabancas locais. Construção com perfurações generosas, ao nível do piso térreo nas orientações mais ventosas, permitindo ventilação cruzada em todo o edifício. A cobertura é construída em suspensão das paredes periféricas num misto de chapa metálico e palha local, garantindo a integração das novas soluções construtivas com as praticadas desde os primórdios! Soluções ajustadas à realidade económica e sem necessidade de manutenção constante, garantido um comportamento térmico eficiente à totalidade do edifício. Neste sentido importa ressalvar o papel do arquitecto nas tomadas de posição sobre esta problemática. Mais do que implementar soluções correntes às quais está amplamente familiarizado, deverá interpretar os sinais do local onde irá implementar a proposta projectual para que na exacta medida possa desenvolver processos que permitam ao edifício revelar um desempenho energético ajustado à realidade climatérica da zona onde está inserido.
16/09/13
A construção e a Vida
26/07/13
Arquitectura sem Arquitectos
Em
1964 realizou-se no MOMA de Nova Iorque, sobre a curadoria de Bernard Rudofsky,
uma exposição intitulada de “Architecture without architects”. Nessa mesma
exposição, Rudofsky defende a ideia de que a arte de construir é algo
intrínseco à condição humana e que esse fenómeno “nada acidental” tem uma
importância incontornável nos perímetros do estudo da teoria e da história da
Arquitectura. Perante um modernismo em velocidade cruzeiro, este momento
permitiu ser um espaço de reflexão e enquadramento da postura do arquitecto
para com a metodologia, no desenvolvimento de tipologias e processos
construtivos. Analisa e afirma que a construção, essa natureza universal, que
perdura na oralidade e experiência entre anciãos, especializou-se e
doutrinou-se na sua própria especialidade! Esta manifestação representa uma
analise sobre algo comummente ignorado e que vai muito para além de modas e
estilos, sendo sem sombra de dúvida a chave para o entendimento da construção
como algo inerente ao presente do nosso dia-a-dia.
A pré-modernidade demonstra-nos processos construtivos ajustados cirurgicamente a realidades sociais enquadradas por clima e realidade económica. A ignorância cientifica permitiu através da experiência, o desenvolvimento de processos exploratórios de tremenda capacidade inventiva que a futura industrialização iria aprisionar. Estes processos metodológicos de auto-expressão espacial devem ser repensados e analisados com mais cuidado pelas escolas de arquitectura. Não há duvida que o Inquérito à arquitectura Regional Portuguesa na década de 50 será mais vasto do que o revelado na obra publicada, contudo esse mesmo documento revela extensas descrições tipológicas com importantes enquadramentos sociológicos carecendo de uma analise sobre possessos construtivos de época e comportamentos/aplicação de materiais nas diversas regiões.
As décadas de 80 e 90 do século XX, face à explosão económica, provocaram processos construtivos “alienígenas” de maneira a saciar a sede de construir. Hoje começam a desenvolver as metástases dessas mutações quer nas estruturas dos edifícios, quer no comportamento térmico no interior dos espaços habitáveis. O calafetamento da habitação por meio de novos materiais sem o cuidado da produção de processos naturais de ventilação natural permitiu o desenvolvimento de habitações que obrigaram a consequentes sistemas mecânicos de climatização ou até mesmo de ventilação forçada.
Perante
uma conjuntura que nos obriga a repensar tudo, será importante recuarmos e
perceber as estruturas desenvolvidas por anónimos que conseguiam ao mesmo tempo
combinar enquadramento com o lugar, estética apurada e funcionalidade em
construções ajustadas às condicionantes climatéricas e aos recursos naturais da
envolvente. Não se pretende questionar todo o processo até à exaustão, será
pertinente um conhecimento mais profundo sobre este “know how” por forma a
criarmos uma maior justeza e adaptabilidade das nossas casas à realidade do
país.
18/07/13
Verdade ou Consequência:
Papel da imagem enquanto veiculo na transmissão de realidades com potencial estético
(1)
Conta-se que Ezra Stoller, durante uma entrevista, quando
questionado acerca da qualidade das suas fotografias sobre o edifício Seagram de Mies van der Rohe, terá
respondido sem hesitação que a «fotografia não é realidade».
O interesse desta resposta passa pelo entendimento do
papel da imagem enquanto veiculo na transmissão de realidades com potencial
estético. Se Stoller era admirado pela maioria dos interveniente do movimento
moderno, não seria apenas pela sua técnica mas sobretudo pelo reconhecimento da
natureza de cada edifício no seu comportamento com a envolvente, luz exterior e
seus habitantes. As suas fotografias ainda hoje são admiradas por revelarem uma interpretação de
carácter do edifício até então desconhecido, demasiadas vezes ignoradas pelos
próprios autores na concepção das obras fotografadas. A revelação de novas perspectivas ou de naturezas obscuras permitem à fotografia
adquirir cada vez mais importância na expressão da realidade
arquitectónica. A dificuldade de aproximar à bidimensionalidade a
experiência do sentir, cheirar, ver e estar, baliza-se no limiar onde a
fotografia poderá adquirir diferentes caminhos nesta transposição: uma atitude
representativa, expressionista ou relatora. A esta ideia sobrepõe-se a de
Stoller, que entende que «não podemos ter boas fotografias de arquitectura sem
boa arquitectura» .(2)
A riqueza da representação fotográfica tem por base uma
intrínseca capacidade desta acrescentar potencial simbólico e enriquecer o
vocabulário visual de um futuro visitante. A representação da expressão
revela-se através da técnica e do olhar do fotógrafo. No entanto, a sua
eficiência não poderá mitigar uma verdade que se encerra em alvenarias, vãos,
ladrilhos e no talento dos seus executantes e projectistas. O mau é
indisfarçável à objectiva. Mas a dúvida sobre a verdade representativa da
imagem já pouco importa, procuramos hoje algo para além da realidade, onde as
ínfimas possibilidades de manipulação tecnológica permitem aproximar com
elevado grau de rigor níveis de perfeição que a realidade não comprova. Neste
contexto, com facilidade se enquadram as visões ficcionadas do trabalho de
Edgar Martins para o New York Times, funcionando como último recurso
para poder atingir objectivos conceptuais que o edificado não revela ou
encontrar a expressão que não fora inicialmente imaginada. A ficção desenha
mundos para lá do olhar expectante em contextos contemporâneos de vazios e
não-lugares, onde Edgar Martins é pescador de águas profundas.
(3)
Quantas vezes nos deparamos com igual qualidade entre os
desenhos de projecto e o produto final? São exemplo os casos iconográficos:
pavilhão de Barcelona de Mies van der Rohe ou a Igreja de Rouchamp de Le
Corbusier. Por outro lado, é extraordinário o papel que a fotografia adquire na
capacidade de potenciar aquilo que os desenhos da realidade construída não
transmitem. Fácil será imaginar a dificuldade que Frank Ghery teria em poder
expressar a quem desconhecesse o edifício a dimensão e natureza do museu
Guggenheim em Bilbau apenas por desenhos ou esquissos. Neste caso particular, é
paradigmático a capacidade de alavancagem que a fotografia possibilita na
divulgação de expressão e arrebatadoras vivências idílicas. Talvez conheçamos
melhor a imagem do museu Guggenheim do que a obra em si. Mesmo os que ousaram
entrar no museu de Bilbau, quando confrontados numa suposta representação da
sua configuração, com certeza haverá uma imposição das suas memórias
fotográficas face às memórias experienciadas in loco.
Durante décadas o desenho foi tido como fundamental para
pensar a arquitectura ajustando-se como atalho entre a ideia e o construído,
assumindo o desenho (mais reconhecidamente com Álvaro Siza Vieira) um lugar
imprescindível na afirmação de autoria. Entre gerações reconheceram-se lógicas
conceptuais, princípios e regras deterministas de estéticas. Foi assim que se
definiram correntes e metodologias. Reconhecidamente, a nível nacional, a
escola do Porto esbateu-se no percurso académico e científico do estudo
arquitectónico português. As referências existem, mas o bastião da resistência
esfumou-se entre as novas tecnologias e velocidade de informação. O academismo
aprisionou-se na história e não soube estender a vela ao sabor dos ventos. O
advento das novas tecnologias digitais permitiu uma profunda revolução no
entendimento da “verdade” da realidade.
Em sobreposição ao desenho, a incontinência do disparo
digital que proporcionou uma capacidade quantitativa, carregando as imagens com
uma superficialidade que responde proporcionalmente aos fenómenos de
mediatização tomados por modas e tendências. Os factos antes insofismáveis, que
perante o olhar do fotógrafo eram captados para suportes de posterior
reprodução, são hoje manipulados através de processos de “limpeza” ocultando ou
acrescentando elementos observados. Projectando o fundamental da analise
critica da obra construída, “no depois”. A coerência arrefeceu nos flashes de uma vontade descomprometida.
No esquecimento reside o papel do mérito
fotográfico, onde está recolhido o olhar do fotógrafo. A sua capacidade
comunicativa será fundamental para o verdadeiro entendimento da realidade objectivada.
Quantas vezes deparámos com diferenças abismais de escala entre a realidade
presenciada e as memorias que as imagens foram incapazes de sugerir? Quantos de
nós aquando da visita do Tempietto de São Pedro em Roma, fomos surpreendidos
por uma escala outrora manipulada por fotografias despidas de presença humana? Espaços
que pela presença humana jamais terão os silêncios de relatos de imagens a
preto e branco, ou o eco do Panteão de Roma. A fotografia de arquitectura sem
um enquadramento artístico ou jornalístico permite-lhe navegar em terra de
ninguém, conduzindo o fotógrafo à manipulação de uma verdade por nós
desconhecida e provavelmente nunca comprovada. A leitura fotográfica acrítica,
em negação da imagem propagandista onde o reconhecimento autoral é assumido,
não passa de um conceito estético enquanto meta inacessível.
O star system da
arquitectura não abdica da “conclusão” da sua obra sem o olhar do “autor” fotógrafo,
impondo este uma marca própria, formatando ou ficcionando a obra ao seu jeito. Por outro lado, essa mesma personalização
tenderá, perversamente, a homogeneizar também o modo como vemos o “estilo” das
diferentes arquitecturas. A vontade de ser reconhecido entre muitos faz da
encomenda da reportagem fotográfica de arquitectura como o mais eficaz veiculo
de difusão cultural e massificação mediática entre profissionais, estudantes e
demais interessados no tema. Entre arquitectos, a qualidade final da obra é
esbatida no “traço” do disparo do fotógrafo. O papel e influência que alguns
fotógrafos desenham entre editores e revistas da especialidade delimitam um star system em que a qualidade da obra
provavelmente não corresponde aos pergaminhos que o enquadramento fotográfico e
editorial potenciam. Como diria Pedro Bandeira « boas ou más arquitecturas
partilham o mesmo glamour da obra elevada à sua condição mediática», definindo
este período de falácia mediática como espaço temporal de fama efémera. Perante
nefasta realidade, o monopólio da mediatização tem de ser interpretado e
clarificado no escrutínio da qualidade. A dúvida subsiste!
(4)
(1) Ezra Stolle,
Terminal do Aeroporto JFK ,da autoria de Eero Saarinen, Nova Iorque, 1962,
Impressão em papel gelatina e prata © Ezra Stoller, Cortesia galeria Yossi
Milo, Nova Iorque
(2) Ezra Stoller: Modern Architecture Photographs by Ezra
Stoller. New York:
Harry N. Abrams, Inc. Publishers, 1990, p. 6
(3)
Martins, Edgar, A Metaphysical Survey of British Dwellings series, The
Photographers' Gallery, Londres 2010
(4) Fernando
Guerra, Capela em Netos, Portugal, da autoria de Pedro Mauricio Borges, 2010.
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