20/05/14

Eduardo Paiva Lopes, a autoria é património

Revista Anteprojectos - Edição de Maio de 2014



A 25 de Julho de 1967, o chefe de Estado, Almirante Américo Thomaz acompanhado de alguns ministros e do General França Borges, à época, presidente da Câmara Municipal de Lisboa, inaugurava as piscinas municipais dos Olivais em Lisboa com pompa e circunstância. Inauguração com grande festa e demonstrações de natação, ainda a tempo de receber, dias depois, o Torneio das Seis Nações (com a participação da Bélgica, Espanha, Noruega, País de Gales, Suíça e Portugal). Aníbal Barros da Fonseca e Eduardo Paiva Lopes, pais do projecto, não poderiam estar mais felizes com a concretização das primeiras piscinas municipais na cidade de Lisboa. O projecto era composto por uma piscina de 50 metros com condições olímpicas para receber competições internacionais, um tanque de saltos acompanhado de uma estrutura de para saltos de desenho relevante e singular, e um edifício de apoio para balneários, serviços, maquinaria e manutenção. Mais tarde, Keil do Amaral e José Pessoa desenhavam os complexos do Campo Grande e do Areeiro respectivamente, proporcionando à cidade, para além de equipamentos dotados de qualidade funcional, obras de relevância estética.
Contudo, e perante o quadro dos arquitectos descritos, gostava de dar relevância ao arquitecto Eduardo Paiva Lopes. A sua intervenção nas piscinas dos Olivais é notável, sabendo que não muito longe dali, projectou em conjunto com mais três colegas os edifícios do Hotel Lutécia, do Teatro Maria Matos e do Cinema King. Também aqui, à imagem dos Olivais, um conjunto de equipamentos de qualidade, facto agora assinalado a quando do levantamento do património arquitectónico do séc.XX. O processo de levantamento acabou por se tornar numa ferramenta de protecção, preservação e defesa deste património, datado mas com qualidade “vintage”. Em 2006 e 2007, a arquitecta Helena Roseta no seu papel enquanto vereadora levantou a sua voz na defesa da obra dos Olivais, apeasar do esforço, a futura intervenção, através do projecto de origem castelhana para reestruturação do actual “Complexo Desportivo dos Olivais” traduzir-se-à na completa desfiguração e desrespeito pelo objecto original. 
Recentemente fui confrontado com a possível demolição de outro edifício da autoria de Eduardo Paiva Lopes, a casa dos Magistrados na cidade do Fundão. Edifício residencial que servia de residência aos magistrados colocados na Comarca do Fundão. Prédio localizado na avenida central, em propriedade total com dois pisos de uso independente. Apresenta uma fachada poente com sistema de portadas em madeira muito interessante e inovador na região, apresentando uma orgânica funcional na procura da luz e na gestão das dinâmicas quotidianas. Peça de valor inquestionável e que vive, também ela, no impasse da demolição. Perante esta afronta à dedicação e memória de Eduardo Paiva Lopes, vale o prémio Valmor atribuído pelo município de Lisboa, ao edifício do banco Credit Franco Portugais no já longínquo ano de 1985.

28/04/14

A moradia Florida ou casa Eva, Fundão



A revista EVA, referência editorial nacional entre as décadas de 30 e 60 do séc. XX, através de uma periodicidade semanal aborda temas como a moda feminina, cosmética, decoração e a vida social do país inclusive a monarquia europeia. No intuito de alavancar vendas e projectar a sua visibilidade sobre o grande público, oferece através de sorteio por cupões, variados objectos ou utensílios de prata, casacos de “vison” ou até mesmo automóveis. Luís Cristino da Silva por esta altura (década e 30) via o cineteatro Capitólio terminado, iniciando um arranque fulgurante da sua carreira profissional. O arquitecto encontra visibilidade em jornais de época e algumas revistas “socialites”. A linha editorial da revista EVA descobre nesta nova arquitectura "Modernista", ligeiramente internacionalista e imbuída das novas ideias racional-funcionalistas que por esta altura atravessavam a Europa, um meio para se iniciar no seio dos leitores masculinos e alargar o seu espectro editorial de referência social. No decorrer do Natal de 1933, ainda nos rescaldos do fim do regime ditatorial militar e numa perspectiva de nova vida cívica em torno da aprovação da Constituição, surgia no panorama arquitectónico nacional, talvez dos casos mais inusitados da sua história. A revista EVA no seu número de Natal sorteia uma moradia a construir pela construtora Amadeu Gaudêncio com projecto de autoria de Luís Cristino da Silva. O sorteio funciona num esquema claro e sem espaço para malabarismo: o felizardo que possua a revista em que o número do seu cupão coincida com o primeiro prémio da lotaria nacional do natal de 1933 terá a oportunidade de construir a respectiva casa sem encargos, em terreno na sua localidade natal. Caiu a sorte a uma família da vila do Fundão na Beira Baixa.
O que torna a situação singular é o facto de o projecto surgir no interior da revista através de perspectivas, desenhos em sistema axonométrico e plantas, concebido sem prévia definição de lugar ou enquadramento. É construído com reduzidas alterações apesar do lote de terreno não apresentar as configurações pré-estabelecidas no projecto inicial. Apesar desta atitude projectual “moderna”, a estética "tradicionalista" de cariz neo-conservador atravessará toda a década de 30 do séc. XX, consolidando-se posteriormente em torno de si uma discussão ao nível de uma doutrina pro-regionalista sustentada mais visivelmente por Raul Lino nas suas “Casas Portuguesas” de 1933. Está estética vinga e consolida-se com o Estado Novo. Apesar da conjuntura e a estória em torno da sua construção, a casa Florida, mais conhecida por casa EVA, acaba por se revelar como um dos edifícios mais interessantes do “modernismo” fundanense sustentado por outras obras de Carlos Ramos, Eduardo Paiva Lopes ou Pires Branco.

Nós, os da arquitectura social



Por estes dias, o panorama social e económico oferece uma difícil realidade para todos aqueles que vivem e sobrevivem da arquitectura, como de pão para a boca. Muito se fala da emigração obrigatória para quem ainda procura continuar a viver das plantas e das maquetas ou da opção na senda de outros caminhos, diametralmente opostos, para os desanimados com a realidade da própria profissão. As dificuldades na construção, com a consequente diminuição da encomenda, permitiu deixar o elevado número de profissionais no território nacional desalojados de trabalho e perspectivas. Perante este cenário, acresce mais um factor descuidado pela opinião pública e mais propriamente pela própria classe: a dificuldade em perceber no seio dos arquitectos que os mesmos, perante a ambição da autoria, não conseguiram entender que era na associação e na criação de grandes escritórios de associados que estava o caminho para o sucesso. Por outro lado, o ensino das últimas décadas, alicerçado por professores na sua maioria com escritórios próprios, estruturou profundamente o pensamento dos alunos nesse anseio da arquitectura de autor.
A dificuldade na associação não se encontra nesta nova geração que face às dificuldades teve de reconhecer e enveredar por este caminho. Dos arquitectos não emigrantes sobrevivem por cá: os “agarrados” ao ensino, os com ancoras à encomenda estrangeira em particular das Áfricas, os que em boa hora se associaram e criaram forças suplementares ou os que se reinventaram dentro do universo da arquitectura.
Quando se fala em reinventar, não passa obrigatoriamente por encontrar novos caminhos fora da profissão. Sou crente que a nossa formação nos apetrechou de uma série de ferramentas que nos permitem descobrir fórmulas para desenvolver trabalho fora do espaço do escritório em áreas como a cenografia, curadoria, gestão cultural, desenvolvimento de projectos expositivos, pedagogia, divulgação cultural, ilustração, organização de eventos, elaboração de artes aplicadas, de certificação energética, avaliação imobiliária, consultoria, gestão de obra, topografia, entre outras… ou até mesmo o desenvolvimento de projectos sociais das mais diversas naturezas. A exposição Tanto Mar, actualmente patente no Centro Cultural de Belém, revela na sua génese uma panóplia de intervenções em todo o mundo com forte carácter social. Algumas das intervenções são desenvolvidas por escritórios sediados em território nacional, outras providas das dificuldades de quem teve de emigrar para se sustentar, contudo encontrou nessa nova realidade espaço e oportunidade para desenvolver projectos (não obrigatoriamente de arquitectura) comungando com as comunidades locais um futuro mais risonho. 
Temos de encarar este futuro incerto numa perspectiva aberta, sem esperar que uma Ordem, muito pouco musculada, possa ser auxílio ou que governantes possam instruir alavancas no universo da construção. Perante este cenário, se ao leitor enquanto arquitecto este discurso soar a ridículo e desprovido de contexto ou de senso na realidade, carpe diem!

19/02/14

As roças de São Tomé e o Café



A investigação, agora publicada, de Rodrigo Rebelo de Andrade e Duarte Pape, talvez seja a mais interessante novidade editorial dentro da esfera da arquitectura. O que mais surpreende nesta aposta é a forma como o trabalho de investigação foi “manipulado”, se por um lado a editora não deixou de transformar o estudo dos dois arquitectos num valioso instrumento de trabalho para estudantes e arquitectos, por outro proporciona aos amantes de África e da história colonial portuguesa um binóculo sobre o arquipélago. Esta abordagem agora publicada, assume uma rotura com o universo de publicações antes produzido sobre a arquitectura luso-colonial africana quase exclusivo a Angola e Moçambique. Territórios como Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe apesar das incursões de Ana Vaz Milheiro e Eduardo Costa Dias, ainda estão por descobrir. Este documento mais do que um inventário, tal como assumem os autores no seu sexto capitulo, é fundamentalmente um enquadramento do café no arquipélago e em toda a orgânica tipológica e programática neste contexto social gerado em torno desta “especiaria”. As roças no seu edificado representam uma época auspiciosa de um legado desenvolvido com diversidade formal e de escolha acertada dos materiais no desenvolvimento da construção. Para além dos 122 exemplos identificados, o enquadramento geográfico explanado permite uma leitura num perfil historicista mais adequado às relações sociais e económicas ali desenvolvidas. Perante um património pouco preservado e sem qualquer cuidado governamental, os autores perspectivam o caminho a travar, apostando fundamentalmente em processos de recuperação e preservação da riqueza patrimonial encontrada. Publicação de leitura fácil e de valor incomensurável não só pela descoberta de tão “distante” e valioso património como pela consubstanciação de um extraordinário legado fotográfico do arquitecto e fotógrafo Francisco Nogueira. Assumo paralelamente a mesma perspectiva de José Manuel Fernandes no seu prefácio, onde menciona que esta obra representa o estudo editado “mais aprofundado, inovador, esclarecido e polifacetado” sobre o tema das roças em São Tomé e Príncipe. Para o leitor-arquitecto fica a faltar o registo técnico detalhado ou levantamento circunstancial ajustado às suas expectativas. A estrutura e beleza das “Roças de São Tomé e Princípe”, permite-nos a espera por mais um degrau na investigação, posteriormente com a coordenação de José Manuel Fernandes neste belíssimo trabalho conjunto de três jovens arquitectos da geração que agora emigra.

24/01/14

Adequar, projectando para a contemporaneidade


Quando falamos de reabilitação ou até mesmo de reconstrução, rapidamente nos salta à memória o complexo programa de “Modernização das Escolas do Ensino Secundário” que tanta tinta fez correr na comunicação social pelas mais diversas razões e enquadramentos. Contudo, apesar de todas as suas vicissitudes, podemos considera-lo, talvez o mais importante exemplo de reabilitação em grande escala que se desenvolveu no nosso país. A escolha directa pelo Parque Escolar, dos gabinetes projectistas que iriam pensar as novas intervenções possibilitou a introdução de estratégias projectuais diferenciadas muito pelo percurso de cada gabinete. A negação da solução imediata de deitar a abaixo e erguer de novo permitiu e obrigou ao desenvolvimento de estratégias de reorganização funcional, ajustamento dos espaços exteriores com permeabilidades com áreas de reunião e convívio ou até mesmo na definição de frentes urbanas (o caso da escola D. Pedro V em Lisboa pelas mãos do arquitecto Ricardo Back Gordon) com base em processos fundamentalmente de adição com base em regras clássicas. A dificuldade em pensar a reabilitação do edificado com as escolas em funcionamento foi exigente para os gabinetes projectistas na medida em que, apesar das dificuldades inerentes, conseguiram na sua generalidade promover opções estéticas cuidadas e apropriadas na ligação e enquadramento do antigo com o novo. É nesta relação que se encontram os exemplos mais felizes nomeadamente a escola Secundária D. Dinis pela equipa do ateliê de Ricardo Back Gordon ou a Escola Secundária Josefa de Óbidos pelo Atelier Central do arquitecto José Martinez e arquitecto Miguel Beleza. Muito para além das opções estéticas, na grande maioria dos casos, as preocupações do ponto de vista ambiental foram tidas em linha de conta, conseguindo promover desempenhos energéticos controlados e adequados à realidade de cada contexto e população residente. Estas novas valências energéticas com a introdução de energias alternativas permitem, hoje, qualificar o antigo com valências equiparáveis a novos equipamentos escolares alinhados por normativas europeias. Com estas soluções integradas ao nível das novas ampliações, desenhos urbanos entre o novo e o antigo e adequabilidade dos sistemas energéticos integrados, possibilita-nos assumir o Programa para a reabilitação do Parque Escolar com edifícios construídos nas mais diversas décadas do séc. XX, enquanto o motor fundamental na valorização do todo, colocando o aluno como personagem principal neste novo contexto escolar. Na análise dos diversos exemplos que hoje temos em mãos percebe-se o diálogo estabelecido entre os vários intervenientes no processo: arquitecto e engenheiros, o Parque Escolar e as Escolas na procura das melhores alternativas e promovendo agora, um caderno de encargos para a promoção de boas práticas na reabilitação de edifícios públicos. 

07/01/14

Charters de Almeida: Cartografias, abstração da forma no confronto com o urbano



“... Naquele império, a Arte da Cartografia atingiu tal perfeição que o Mapa de uma só Província ocupava toda a Cidade e o Mapa do Império toda a Província. Com o tempo, estes Mapas desmesurados não satisfizeram e os Colégios de Cartógrafos levantaram um Mapa do Império e coincidia pontualmente com ele…” (1)

Neste excerto de citação que Jorge Luis Borges vai recuperar às Viajes de Varones Prudentes de Suárez Miranda de 1658, intitulando-o de “Rigor da Ciência”, residem quatro ideias fundamentais do processo criativo de Charters de Almeida: a Cartografia (espaço), os Mapas (síntese), a Cidade (arquitectura) e o Tempo. Na conjugação da complexidade destes temas através da sublime expressão concilia os cosmos nas suas diferentes escalas. Aí reside o talento. Com base na mensuração da distancia reconhece a cidade enquanto contexto de geometrias de riqueza humana, onde a urbe faz mais sentido. Neste esquema de leitura de dentro para fora Charters de Almeida posiciona-se perante o “mundo” adequando as suas lógicas escultóricas em potenciais referencias introdutórias de uma nova realidade. Aqui redefine o espaço, orienta o sujeito numa nova perspectiva urbana. A imposição é assumida mas o lugar respeita-a, opina mas não transgride, reage e constrói O horizonte é lançado para novos limites originais da nova cartografia. Desenham-se novos mapas redefine-se a cidade.

As “peças” pela sua natureza reagem na potência em contextos que o permitem, no entanto é na escassez de recursos que estas elevam a força da sua expressão. Quando Charters de Almeida afirma: «Procuro dizer o mais que posso com o menos possível de elementos», apesar da afirmação se elevar aparentemente contraditória na relação imediata da escala, contudo é na distância e no macro reconhecimento da cidade que o gesto assume a síntese e clarividência.
A abstracção da forma no confronto com o urbano origina novos conceitos, a matéria e a cor mutam-se, aclarando a envolvente onde “modulor” é humano e governador da geometria. Texturas, superfícies e volumes são humanas na diferença como Espiga Pinto refere, «a geometria está em nós, nos nossos gestos, na nossa mente e na arquitectura do universo».

A cidade matérica expressão urbana da convivência humana, é um emaranhado de realidades com recursos ilimitados conduzidos essencialmente no tacto e na visão. Charter de Almeida confronta o ruído diário com uma perspectiva luminosa e fracturante. As lógicas conjugadas diariamente, no confronto, redesenham-se em geometrias puras e radiosas, oferecendo algo mais além. Este percurso que atravessa o antes para o imediato ou um empolgante depois. É essencial na descoberta da obra. O lugar é assumido e construído no inconsciente despontando a ideia do depois na retaguarda do antes. A integração é total. A transparência não é matérica, mas expressiva. O tempo dirige uma certa neutralidade clássica ou naturalidade. O sítio funda-se e o lugar renasce com raízes ancestrais. Só uma consciência sensível poderia encontrar na negação do monumento a possibilidade de construção de uma dimensão maior à escala da praça. O posicionamento referencial é instruído da negação de ostentação, colonizando consequentemente o lugar. Charters de Almeida proporciona-nos uma abertura empolgante à cidade devolvendo-nos a proximidade através da distância e discrição aparente. É talvez nas variadas contradições que constrói riqueza urbana e desenvoltura estética difícil de obter em territórios acidentados de acasos e imposições.

Falámos sempre de cidade, a escultura diluiu-se, cartografou-se...

12/12/13

Corbusier e a Luz de Siza

Sabiamente Le Corbusier em 1923 definiu no seu livro “vers une architecture” a arquitectura enquanto “le jeu, savant, correct et magnifique des volumes sous la lumière.” Se existe alguém que tenha percebido o verdadeiro sentido desta frase e explorando-o na sua plenitude, é sem dúvida Alvaro Siza Vieira. A percepção da envolvente e o trabalho com os pontos cardeais são primordiais na desenvoltura da sua metodologia projectual! Perante a problemática do lugar, a luz, não é o fim na construção das espacialidades interiores, na media em que o jogo das sombras exteriores é mecanismo de hierarquização quando o edifício se debruça sobre o território. Desde as suas primeiras obras se observa uma capacidade aditiva onde o domínio do pormenor impera, não é na soma das partes que se lê o conjunto no pressuposto que a complexidade da sua obra se enjeita para além do poder criativo, no desenvolvimento da relação formal-espacial. As formas, os espaços, os detalhes e a luz vivem e sobrevivem, na duplicidade do confronto e da adição, numa autonomia harmoniosa e sem complexos. Aqui se eleva a diferença do seu estatuto, Siza, tal como Reyner Banham refere em “Le brutalisme en Architecture” determina a luz natural para uma espacialidade expressa numa imagem arquitectónica sem semelhante, proporcionando um habitar para um lugar neste tempo preciso. Fernando Távora chega a afirmar em 1947 que “tudo há que refazer, começando pelo princípio”, entendendo que se deveria olhar para o passado e para a arquitectura genuinamente portuguesa desenvolvida pelas mãos da tradição e do saber falado. Perante este estreito dilema, jovens arquitectos à época desenvolvem um caminho sustentado em um novo vocabulário que sintetiza as necessidades habitacionais de época e traduzem uma humana Portugalidade na multiplicidade das suas relações. Apesar deste registo, a obra de Siza permite a desenvoltura de uma complexidade alicerçada num percurso imprevisível que permite que cada obra seja autónoma apesar de ser mais uma peça numa obra continua e sem interrupções. A continuidade detectada é garantida por uma postura e por um não formalismo que transforma o real em objecto de projecto, conduzindo a proposta à essência primeira do lugar. A luz persiste, mas agora sobre volumetrias que constroem a paisagem através de “um trabalho modesto, cauteloso”. Tal como Siza afirma relativamente à tradição, ele mesmo se transporta de baixo da luz por entre “conflitos, compromissos, mestiçagem e transformação.” 

11/12/13

Nadir Afonso - da intuição artística ao raciocinínio estético

                               @ nadir afonso


Arquitecto e pintor, no mundo

Nadir em todos os sentidos assume-se a excepção à regra, onde como ele, são poucos os exemplos no panorama artístico português que tenham conseguido produzir tão profunda criação teórica aliada a uma profícua e almejada prática de atelier. A totalidade da sua obra não reflecte academismo institucional ou identidades reflexo de outros, a sua singularidade é verdade na sua intemporalidade identitária. Perfil demonstrado com clareza nos escritos que desde sempre retalhou no papel e fez questão de publicar. Talvez na sua obra escrita, se encontre a totalidade da sua obra, onde o pensamento é explanado na palavra e encerrado posteriormente na fluidez do traço. È nesta experiencia que Nadir se sente comprometido na procura do primado do carácter fenomenológico. Onde a geometria do universo e a sua cosmogonia são enceto para a justificação da sua obra. Entendendo a via entre o homem e objecto, entidade própria, geradora da alteração do “significado qualitativo dos objectos” para a “expressão quantitativa dos espaços”. Assume por um lado que a redução fenomenológica coloca em suspenso o conhecimento das coisas do mundo exterior a fim de concentrar-se o individuo exclusivamente na experiência em foco, por outro lado “o objecto existe sem o sujeito, mas não é dado sem a actividade do sujeito”. Arroga assim em obras anteriores que esta relação é uma entidade em si, e aqui dá lugar ao papel da intuição artística, onde acorda a geometria como alicerce no entendimento da significância entre o mundo e a consciência. A imutabilidade e eterna harmonia adquirem consciência no raciocínio estético, adquirindo a geometria um papel orientador sendo legitimada por Pitágoras, a sua verdade. O que procura na sua essência, são as qualidades da perfeição, aquando da sua aproximação limite revela-se a harmonia. Se a geometria de Pitágoras alimentava o encanto duradouro para a perfeição de Marx, Nadir defende o sentido da harmonia alicerçado nas leis imutáveis da geometria. Aqui reside a essência da obra de Nadir, numa depurada clarividência na expressão do pensamento complementa uma obra artística, e agora, na densa espessura da escrita “da intuição artística ao raciocínio estético”.


03/12/13

Livro: As Roças de São Tomé e Príncipe



As Roças de São Tomé e Príncipe, estudo e investigação de Rodrigo Rebelo de Andrade e Duarte Pape, talvez seja neste final de ano, a mais interessante novidade editorial nacional dentro da esfera da arquitectura. O que mais surpreende nesta aposta da Tinta da China é a forma como a investigação foi “manipulada”, se por um lado a editora não deixou de transformar o estudo dos dois talentosos investigadores e arquitectos num valioso instrumento de estudo para estudantes e arquitectos, por outro proporcionou ao leitor um binóculo sobre o arquipélago para amantes de África e da história colonial portuguesa. Perante esta publicação percebe-se que procura ocupar um espaço que outras editoras especializadas, vão descurando e trabalhando com pouca convicção e sentido. Em 2010 com “Moderno Tropical – Arquitectura em Angolae Moçambique, 1948-1975” de Ana Magalhães e Inês Gonçalves reconhecia-se um atrevimento arriscado, confrontados com esta obra, somos a anuir determinação e escolha acertada, iniciando um processo interno, de construção de uma “estante” editorial que versa a arquitectura.

O trabalho apresentado por Rodrigo Rebelo de Andrade e Duarte Pape vem ao encontro de uma necessidade latente nas publicações de investigação sobre arquitectura colonial, onde figuras como José Manuel Fernandes em “Geração Africana”, de Livros Horizonte, “África - Arquitectura e Urbanismo de Matriz Portuguesa” e “Arquitectura e Urbanismo na África” das edições Caleidoscópio; Ana Vaz Milheiro em “Guiné-Bissau, 2011” da Circo de Ideias e “Os Trópicos sem Le Corbusier” da Relógio D´Água; ou Miguel Santiago num registo mais monográfico sobre “Pancho Guedes – Metamorfoses Espaciais” da Caleidoscópio, têm vindo a promover, entre outros, a noção de que a arquitectura de raiz portuguesa apesar de amplo e merecido estudo ainda é por nós, desconhecida. Esta abordagem agora publicada assume uma rotura com o universo de publicações antes produzido sobre a arquitectura luso-colonial africana, quase exclusivo ao território Angolano e Moçambicano. Territórios como Cabo Verde, Guiné-Bissau e São Tomé e Príncipe estão por descobrir apesar das incursões de Ana Vaz Milheiro e Eduardo Costa Dias essencialmente sobre o séc. XX guineense e cabo-verdiano e sobre o interessante e importante trabalho desenvolvido pelos gabinetes de urbanização colonial entre 1944 e 1974.
Mais do que um inventário, tal como assumem os autores no sexto capitulo, é fundamentalmente um enquadramento do café no arquipélago e toda a orgânica tipológica e programática por detrás de um contexto social gerado em torno desta cultura. As roças no seu edificado representam uma época auspiciosa de um legado desenvolvido com diversidade formal e de escolha acertada dos materiais no desenvolvimento da construção. Para além dos 122 exemplos identificados, o enquadramento geográfico explanado permite uma leitura num perfil historicista mais adequado às relações sociais e económicas ali desenvolvidas. Perante um património pouco preservado e sem qualquer cuidado governamental, mais à frente, os autores perspectivam o caminho a travar, apostando fundamentalmente em processos de recuperação e preservação da riqueza patrimonial encontrada.

Publicação de leitura fácil e de valor incomensurável não só pela descoberta de tão “distante” e valioso património como pela consubstanciação de um extraordinário legado fotográfico do jovem arquitecto e fotografo Francisco Nogueira que permite ao leitor viajar sem comprar bilhete. Assumindo a mesma perspectiva de José Manuel Fernandes no seu prefácio, esta obra representa o estudo editado “mais aprofundado, inovador, esclarecido e polifacetado” sobre o tema das roças em São Tomé e Príncipe. Para o leitor arquitecto fica a faltar o registo técnico detalhado ou levantamento circunstancial ajustado às suas expectativas, contudo a estrutura e beleza da obra que Tinta da China nos presenteia, permite-nos a espera por mais um degrau na investigação, posteriormente com a coordenação de José Manuel Fernandes neste belíssimo trabalho conjunto de três jovens arquitectos da geração que agora emigra.



1.ª edição: Outubro de 2013

n.º de páginas: 240

isbn: 978‑989‑671‑175‑7

12/11/13

Supermodernos


O Movimento Moderno, força destemida com leme de betão foi domesticada pelo capital e lógicas financeiras após a Grande Guerra, dilui-se na estética e assumiu um papel de protagonista nas questões “mais sociais”. Já o chamado pós-modernismo através do contextualismo, adquire expressão que avança mais tarde para o descontrutivismo filosófico de Derrida, Deleuze e companheiros. Esta “evolução” da “condição” moderna é hoje assumida por muitos como uma era supermoderna, onde os lugares deram vez aos “não lugares” de Marc Áuge. Com a velocidade que as sociedades actuais imprimem nas suas dinâmicas internas, o “lugar” historicista e enraizado no contexto do pós-modernsmo transformou-se através da maior mobilidade, do bombardeamento de signos e informações e na produção de elevados níveis de anonimato nos espaços públicos. Deste modo os não lugares assumem-se como auto-redomas relativamente à localização, envolvente e por outro lado extremamente permeáveis aos diferentes usos e lógicas ligadas às redes de informação e interesses económicos dos quais, cada vez mais, são fatia importante. A actual percepção de lugar e uso do espaço é consideravelmente diferente do final do séc. XX pelo incremento do comércio mundial e do expansionismo que a “net” permitiu na disponibilidade e obtenção de informação.
Como Ibelings afirma, agora o “mundo tornou-se menor e, ao mesmo tempo, maior”, na exacta medida em que, por um lado, a facilidade na difusão da informação na “rede” tornou o mundo mais pequeno, por outro lado a actual possibilidade de comunicação e interacção de indivíduos que anteriormente pela distância espacial não lhes seria possível interagir, torna o mundo maior.

Perante os flashes da ribalta a actual arquitectura distancia-se da era pós-moderna através de vontades tecnocráticas que procuram uma resposta ao livre capital das cidades cosmopolitas e necessidades das empresas. Esta arquitectura que se coloca ao serviço da modernização, como parte do processo económico apresenta-se livre de qualquer justificação social de apoio ou assistência. O paradigma terá de mudar em resposta ao esvaziamento do conceito económico do continente europeu e americano e como solução para
estruturar o desenvolvimento dos países do continente africano e asiático.

Moçambique e José Forjaz


O regime ditatorial foi determinante no percurso da sociedade portuguesa no principio do séc.XX, tendo uma forte presença na pedagogia da arquitectura durante este período. A politica da encomenda proporcionou obras de grande envergadura e emblemáticas para a época em alguns dos casos. No entanto o advento do modernismo, através dos CIAM e com algumas influencias modernistas brasileiras, proporcionou que ao pouco dinâmico imaginário formal imperial, um novo caminho através das novas gerações de 40. No caso concreto de Maputo, “Pancho Guedes” é a maior referencia e talvez a obra que marca de forma indelével a paisagem da cidade pela sua excentricidade relativamente ás convenções de época. Contudo depois da independência em 75, este ritmo esmorece e a qualidade arquitectónica da antiga Lourenço Marques abranda. As objectivas das publicações da especialidade deixam de estar viradas para África apesar de algumas personagens de relevo continuarem na sua senda de mérito. Um dos maiores exemplos é José Forjaz, com a pacificação do território, constitui uma obra interessante e consubstanciada na observação do território moçambicano (lugar e paisagem), nas lógicas construtivas vernaculares, nas orgânicas tipológicas e fundamentalmente nos valores do lugar e do grupo social onde está inserido.
José Forjaz nas duas ultimas décadas produziu uma obra no território moçambicano talvez pouco revisitada e analisada pela critica. Obra complexa que abrange os mais diversificados programas e níveis de escala, nomeadamente edifícios residenciais, públicos, religiosos, escolas ou monumentos. Com um percurso que pisa territórios influenciados por Barragan ou Charles Correa contudo a formação portuguesa não o inibe de beber do imaginário modernista brasileiro. Apresenta uma abordagem ao lugar e programa proposto de uma extrema sensibilidade e reconhecimento da envolvente quer na escolha dos materiais e sua conjugação, quer no controlo da luz e condução da mesma na definição de hierarquias. A economia de recursos é utilizada numa inversão exponencial à sua capacidade de produção de complexidade espacial como são exemplos disso a Escola profissional dos Salasianos de Matundo ou a Residência Torcato em Maputo.

O Mosteiro das Clarissas em Namaacha, a residência João Pó e a  Astrid Fion em Maputo são três obras determinantes na definição do perfil do arquitecto que produz uma obra que marcará de forma indelével o território moçambicano. Com um profundo enraizamento na cultura moçambicana, José Forjaz define actualmente um relevante caminho no panorama arquitectónico africano, como diria Mia Couto, “é para isso que servem os caminhos, para nos fazerem parentes do futuro”. 

24/10/13

Bambadinca, Guiné-Bissau

           


Recentemente realizei uma viajem à Guiné-Bissau, mais propriamente à capital  Bissau e a Bambadinca, onde acompanhei a construção de um projecto de arquitectura em co-autoria com o atelier do qual sou coordenador. O projecto na  sua génese é uma central fotovoltaica híbrida que pretende fornecer energia eléctrica à totalidade da vila de Bambadinca com aproximadamente sete mil  habitantes. Perante uma realidade da construção tão distante do panorama  ocidental em todas as suas vertentes: clima, qualidade construtiva, qualificação da mão-de-obra e técnicos especializados, acesso aos materiais e tecnologias de apoio, só através de processos criativos se poderão propor soluções de controlo ambiental e das águas das chuvas que correspondam correctamente às exigências da região. Agora se entende, a quando da realização do documentário de Catarina Alves Costa “o arquitecto e a cidade velha”, que o arquitecto Álvaro Siza Vieira questione um dos habitantes locais, se seria necessária, após a remodelação da sua habitação, a colocação de vidros nas janelas! Esta observação não foi de todo descabida quando confrontado com a natureza das habitações a que se propunha recuperar e correspondente clima que se ajustava à Cidade Velha da ilha de Santiago em Cabo Verde. O clima africano a isso obriga e determinada que as soluções tenham de ser obrigatoriamente consentâneas com a realidade envolvente, não permitindo imposições de sistemas de climatização dispendiosos ou vulgarmente aplicados no continente europeu. A observação e análise da natureza das construções da região permitiu-nos desenvolver uma proposta que se adapta às condições climatéricas da zona e às exigentes especificações técnicas das baterias de apoio aos painéis solares. Nessa medida todo o edifício recorre a sistemas de ventilação passiva com soluções baseadas nas construções vernaculares das tabancas locais. Construção com perfurações generosas, ao nível do piso térreo nas orientações mais ventosas, permitindo ventilação cruzada em todo o edifício. A cobertura é construída em suspensão das paredes periféricas num misto de chapa metálico e palha local, garantindo a integração das novas soluções construtivas com as praticadas desde os primórdios! Soluções ajustadas à realidade económica e sem necessidade de manutenção constante, garantido um comportamento térmico eficiente à totalidade do edifício. Neste sentido importa ressalvar o papel do arquitecto nas tomadas de posição sobre esta problemática. Mais do que implementar soluções correntes às quais está amplamente familiarizado, deverá interpretar os sinais do local onde irá implementar a proposta projectual para que na exacta medida possa desenvolver processos que permitam ao edifício revelar um desempenho energético ajustado à realidade climatérica da zona onde está inserido. 

16/09/13

A construção e a Vida



Antoine de Saint-Exupéry em 1939 na sua obra “Terre des hommes”, alimentava a esperança de que ”a nossa casa tornar-se-á sem dúvida, pouco a pouco, mais humana”, contudo nada mais enganado quanto a este fim. Passados pouco mais de três décadas, de intenso anseio, Italo Calvino replicava nas suas "Cidades Invisíveis" descrevendo a cidade de Trude como “se ao aterrar em Trude eu não tivesse lido o nome da cidade escrito num grande letreiro, pensaria ter chegado ao mesmo aeroporto de onde havia partido. Os subúrbios que me fizeram atravessar não eram diferentes dos da cidade anterior.” Será interessante constatar que vivemos uma época, cada vez mais complexa e cheia de contradições e de difícil entendimento e percepção do mundo que nos rodeia. Constata-se que o habitante urbano a político encontra no contexto de cidade resposta a necessidades, antes exclusivamente do lar. A cidade adquiriu a dimensão do particular. Uma realidade do construído que se expande e contrai, vive da dimensão do limite como resposta às nossas necessidades. O privado, numa crescente minimização da sua escala, encontra na tecnologia e na cidade a fuga para os seus limites. Em resposta a esta condição, o perímetro do privado redefine-se sem fronteiras entre funções. Os espaços exclusivos de repouso são agora também eles de refeições, lazer ou higiene. A construção e tecnologias acessórias tiveram que se adaptar na promoção deste “life style”, na procura da rapidez na oferta e disposição ecléctica do programa habitacional. O gesso cartonado tornou-se ora na ferramenta e na última fronteira da cidade. Se na micro dimensão da vida humana é o gesso quem reina, já numa escala planetária é o betão dominador das fronteiras físicas e das suas limitações. Se globalmente as culturas, espaços e narrativas tende a uniformizar-se, actualmente, no traçado planetário, em todos os continentes sem excepção, existem mais de trinta divisões físicas em betão que segregam raças, nacionalidades, crenças, ideias e disputas territoriais. A disputa de territórios não tem fim e apresenta-se determinante para alguns no orgulho ou determinação religiosa. A esperança na realização de uma promessa de futuro, muitas vezes está do outro lado da “linha” do betão, virtualidade consciente e diferenciadora, no entanto cada vez mais incapaz de controlar fluxos ou tentações. A construção física de vedações implantadas em territórios perenes na sua génese e topografia é cada vez mais uma constante, sendo que, o controlo do espaço jurídico e político obrigou ao longo do tempo, à construção de barreiras que permitiram a desenvoltura de estruturas e sociedades que determinaram diferentes ocupações de território, apesar de confinadas por muros. A construção mais do que vontades ou desejos é determinante na nossa vida mas pela sua generalização é nos invisível aos olhos.

26/07/13

Arquitectura sem Arquitectos




Em 1964 realizou-se no MOMA de Nova Iorque, sobre a curadoria de Bernard Rudofsky, uma exposição intitulada de “Architecture without architects”. Nessa mesma exposição, Rudofsky defende a ideia de que a arte de construir é algo intrínseco à condição humana e que esse fenómeno “nada acidental” tem uma importância incontornável nos perímetros do estudo da teoria e da história da Arquitectura. Perante um modernismo em velocidade cruzeiro, este momento permitiu ser um espaço de reflexão e enquadramento da postura do arquitecto para com a metodologia, no desenvolvimento de tipologias e processos construtivos. Analisa e afirma que a construção, essa natureza universal, que perdura na oralidade e experiência entre anciãos, especializou-se e doutrinou-se na sua própria especialidade! Esta manifestação representa uma analise sobre algo comummente ignorado e que vai muito para além de modas e estilos, sendo sem sombra de dúvida a chave para o entendimento da construção como algo inerente ao presente do nosso dia-a-dia.

A pré-modernidade demonstra-nos processos construtivos ajustados cirurgicamente a realidades sociais enquadradas por clima e realidade económica. A ignorância cientifica permitiu através da experiência, o desenvolvimento de processos exploratórios de tremenda capacidade inventiva que a futura industrialização iria aprisionar. Estes processos metodológicos de auto-expressão espacial devem ser repensados e analisados com mais cuidado pelas escolas de arquitectura. Não há duvida que o Inquérito à arquitectura Regional Portuguesa na década de 50 será mais vasto do que o revelado na obra publicada, contudo esse mesmo documento revela extensas descrições tipológicas com importantes enquadramentos sociológicos carecendo de uma analise sobre possessos construtivos de época e comportamentos/aplicação de materiais nas diversas regiões.

As décadas de 80 e 90 do século XX, face à explosão económica, provocaram processos construtivos “alienígenas” de maneira a saciar a sede de construir. Hoje começam a desenvolver as metástases dessas mutações quer nas estruturas dos edifícios, quer no comportamento térmico no interior dos espaços habitáveis. O calafetamento da habitação por meio de novos materiais sem o cuidado da produção de processos naturais de ventilação natural permitiu o desenvolvimento de habitações que obrigaram a consequentes sistemas mecânicos de climatização ou até mesmo de ventilação forçada.


Perante uma conjuntura que nos obriga a repensar tudo, será importante recuarmos e perceber as estruturas desenvolvidas por anónimos que conseguiam ao mesmo tempo combinar enquadramento com o lugar, estética apurada e funcionalidade em construções ajustadas às condicionantes climatéricas e aos recursos naturais da envolvente. Não se pretende questionar todo o processo até à exaustão, será pertinente um conhecimento mais profundo sobre este “know how” por forma a criarmos uma maior justeza e adaptabilidade das nossas casas à realidade do país.

18/07/13

Verdade ou Consequência:

 
Papel da imagem enquanto veiculo na transmissão de realidades com potencial estético



       (1)

Conta-se que Ezra Stoller, durante uma entrevista, quando questionado acerca  da qualidade das suas fotografias sobre o  edifício Seagram de Mies van der Rohe, terá respondido sem hesitação que a «fotografia não é realidade».   
O interesse desta resposta passa pelo entendimento do papel da imagem enquanto veiculo na transmissão de realidades com potencial estético. Se Stoller era admirado pela maioria dos interveniente do movimento moderno, não seria apenas pela sua técnica mas sobretudo pelo reconhecimento da natureza de cada edifício no seu comportamento com a envolvente, luz exterior e seus habitantes. As suas fotografias ainda hoje são  admiradas por revelarem uma interpretação de carácter do edifício até então desconhecido, demasiadas vezes ignoradas pelos próprios autores na concepção das obras fotografadas.  A revelação de novas perspectivas  ou de naturezas obscuras permitem à fotografia adquirir cada vez mais importância na expressão da realidade arquitectónica.  A dificuldade  de aproximar à bidimensionalidade a experiência do sentir, cheirar, ver e estar, baliza-se no limiar onde a fotografia poderá adquirir diferentes caminhos nesta transposição: uma atitude representativa, expressionista ou relatora. A esta ideia sobrepõe-se a de Stoller, que entende que «não podemos ter boas fotografias de arquitectura sem boa arquitectura» .(2)
A riqueza da representação fotográfica tem por base uma intrínseca capacidade desta acrescentar potencial simbólico e enriquecer o vocabulário visual de um futuro visitante. A representação da expressão revela-se através da técnica e do olhar do fotógrafo. No entanto, a sua eficiência não poderá mitigar uma verdade que se encerra em alvenarias, vãos, ladrilhos e no talento dos seus executantes e projectistas. O mau é indisfarçável à objectiva. Mas a dúvida sobre a verdade representativa da imagem já pouco importa, procuramos hoje algo para além da realidade, onde as ínfimas possibilidades de manipulação tecnológica permitem aproximar com elevado grau de rigor níveis de perfeição que a realidade não comprova. Neste contexto, com facilidade se enquadram as visões ficcionadas do trabalho de Edgar Martins para o New York Times, funcionando como último recurso para poder atingir objectivos conceptuais que o edificado não revela ou encontrar a expressão que não fora inicialmente imaginada. A ficção desenha mundos para lá do olhar expectante em contextos contemporâneos de vazios e não-lugares, onde Edgar Martins é pescador de águas profundas.

         (3)
Quantas vezes nos deparamos com igual qualidade entre os desenhos de projecto e o produto final? São exemplo os casos iconográficos: pavilhão de Barcelona de Mies van der Rohe ou a Igreja de Rouchamp de Le Corbusier. Por outro lado, é extraordinário o papel que a fotografia adquire na capacidade de potenciar aquilo que os desenhos da realidade construída não transmitem. Fácil será imaginar a dificuldade que Frank Ghery teria em poder expressar a quem desconhecesse o edifício a dimensão e natureza do museu Guggenheim em Bilbau apenas por desenhos ou esquissos. Neste caso particular, é paradigmático a capacidade de alavancagem que a fotografia possibilita na divulgação de expressão e arrebatadoras vivências idílicas. Talvez conheçamos melhor a imagem do museu Guggenheim do que a obra em si. Mesmo os que ousaram entrar no museu de Bilbau, quando confrontados numa suposta representação da sua configuração, com certeza haverá uma imposição das suas memórias fotográficas face às memórias experienciadas in loco.
Durante décadas o desenho foi tido como fundamental para pensar a arquitectura ajustando-se como atalho entre a ideia e o construído, assumindo o desenho (mais reconhecidamente com Álvaro Siza Vieira) um lugar imprescindível na afirmação de autoria. Entre gerações reconheceram-se lógicas conceptuais, princípios e regras deterministas de estéticas. Foi assim que se definiram correntes e metodologias. Reconhecidamente, a nível nacional, a escola do Porto esbateu-se no percurso académico e científico do estudo arquitectónico português. As referências existem, mas o bastião da resistência esfumou-se entre as novas tecnologias e velocidade de informação. O academismo aprisionou-se na história e não soube estender a vela ao sabor dos ventos. O advento das novas tecnologias digitais permitiu uma profunda revolução no entendimento da “verdade” da realidade.
Em sobreposição ao desenho, a incontinência do disparo digital que proporcionou uma capacidade quantitativa, carregando as imagens com uma superficialidade que responde proporcionalmente aos fenómenos de mediatização tomados por modas e tendências. Os factos antes insofismáveis, que perante o olhar do fotógrafo eram captados para suportes de posterior reprodução, são hoje manipulados através de processos de “limpeza” ocultando ou acrescentando elementos observados. Projectando o fundamental da analise critica da obra construída, “no depois”. A coerência arrefeceu nos flashes de uma vontade descomprometida. No esquecimento reside o papel  do mérito fotográfico, onde está recolhido o olhar do fotógrafo. A sua capacidade comunicativa será fundamental para o verdadeiro entendimento da realidade objectivada. Quantas vezes deparámos com diferenças abismais de escala entre a realidade presenciada e as memorias que as imagens foram incapazes de sugerir? Quantos de nós aquando da visita do Tempietto de São Pedro em Roma, fomos surpreendidos por uma escala outrora manipulada por fotografias despidas de presença humana? Espaços que pela presença humana jamais terão os silêncios de relatos de imagens a preto e branco, ou o eco do Panteão de Roma. A fotografia de arquitectura sem um enquadramento artístico ou jornalístico permite-lhe navegar em terra de ninguém, conduzindo o fotógrafo à manipulação de uma verdade por nós desconhecida e provavelmente nunca comprovada. A leitura fotográfica acrítica, em negação da imagem propagandista onde o reconhecimento autoral é assumido, não passa de um conceito estético enquanto meta inacessível.
O star system da arquitectura não abdica da “conclusão” da sua obra sem o olhar do “autor” fotógrafo, impondo este uma marca própria, formatando ou ficcionando a obra ao seu jeito.  Por outro lado, essa mesma personalização tenderá, perversamente, a homogeneizar também o modo como vemos o “estilo” das diferentes arquitecturas. A vontade de ser reconhecido entre muitos faz da encomenda da reportagem fotográfica de arquitectura como o mais eficaz veiculo de difusão cultural e massificação mediática entre profissionais, estudantes e demais interessados no tema. Entre arquitectos, a qualidade final da obra é esbatida no “traço” do disparo do fotógrafo. O papel e influência que alguns fotógrafos desenham entre editores e revistas da especialidade delimitam um star system em que a qualidade da obra provavelmente não corresponde aos pergaminhos que o enquadramento fotográfico e editorial potenciam. Como diria Pedro Bandeira « boas ou más arquitecturas partilham o mesmo glamour da obra elevada à sua condição mediática», definindo este período de falácia mediática como espaço temporal de fama efémera. Perante nefasta realidade, o monopólio da mediatização tem de ser interpretado e clarificado no escrutínio da qualidade. A dúvida subsiste!


         (4)

(1)   Ezra Stolle, Terminal do Aeroporto JFK ,da autoria de Eero Saarinen, Nova Iorque, 1962, Impressão em papel gelatina e prata © Ezra Stoller, Cortesia galeria Yossi Milo, Nova Iorque 
(2)   Ezra Stoller: Modern Architecture Photographs by Ezra Stoller. New York: Harry N. Abrams, Inc. Publishers, 1990, p. 6 
(3)   Martins, Edgar, A Metaphysical Survey of British Dwellings series, The Photographers' Gallery, Londres 2010 
(4)   Fernando Guerra, Capela em Netos, Portugal, da autoria de Pedro Mauricio Borges, 2010.